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SUPREMO SUSPENDE JULGAMENTO SOBRE FORO ESPECIAL DEPOIS DA SAÍDA DO CARGO

Um pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso interrompeu nesta sexta-feira (29/3) o julgamento do Plenário do Supremo Tribunal Federal sobre o alcance do foro especial por prerrogativa de função, conhecido como foro privilegiado. A sessão virtual se estenderia até o próximo dia 8.

Antonio Augusto/SCO/STF
Luís Roberto Barroso

Barroso, presidente da corte, pediu vista dos autos nesta sexta-feira

Antes do pedido de vista, os ministros Gilmar Mendes (relator da matéria), Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli já haviam se manifestado — Toffoli em apenas um dos dois casos julgados. Todos consideraram que o foro especial para julgamento de crimes funcionais se mantém mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois do fim do mandato.

 

Histórico

Em maio de 2018, o STF decidiu que deputados e senadores só devem responder a processos criminais na corte se os fatos imputados ocorreram durante o mandato e têm relação com o exercício do cargo.

Na ocasião, também ficou estabelecido que as investigações continuam no Supremo somente enquanto durar o mandato. Ou seja, se o parlamentar deixa o cargo por renúncia, cassação ou por não ter sido reeleito, por exemplo, a apuração vai para a primeira instância. Antes, qualquer inquérito ou ação penal contra congressistas, mesmo anterior ao mandato, ia para o STF.

O julgamento pelo Plenário diz respeito a dois casos. Um deles tem como protagonista a ex-senadora Rose de Freitas (MDB-ES), acusada de corrupção passiva, fraude em licitação, lavagem de dinheiro e organização criminosa.

O outro envolve o senador Zequinha Marinho (Podemos-PA), que pediu que fosse enviada ao Supremo a acusação de que ele teria cometido a prática de “rachadinha” em 2013, quando era deputado federal.

O senador afirma que ocupou cargos eletivos ininterruptamente, pois foi deputado federal de 2007 a 2015, vice-governador do Pará de 2015 a 2018 e senador a partir de 2019. No momento, o processo contra o político está na Justiça Federal de Brasília.

O inquérito foi aberto em 2013, inicialmente sob supervisão do STF. Em 2015, com a renúncia do parlamentar, o caso foi remetido à Justiça Federal da 1ª Região.

Em 2023, o Superior Tribunal de Justiça analisou o caso e manteve o processo na primeira instância. Na ocasião, a corte entendeu que o STF deixou de ser competente quando o político passou a exercer o cargo de vice-governador.

Segundo o tribunal, a manutenção do foro por prerrogativa de função para parlamentares brasileiros restringe-se às hipóteses em que os diferentes mandatos foram exercidos em ordem sequencial e ininterrupta, ainda que em casas legislativas diferentes.

 

Entendimento do relator

Gilmar, relator do caso, considerou que a competência dos tribunais para julgamento de crimes funcionais prevalece mesmo após a interrupção das funções públicas, por qualquer causa — renúncia, cassação, não eleição etc.

Por isso, o relator reconheceu a competência do STF para processar e julgar a ação penal contra Marinho. Ele foi acompanhado por Zanin.

Ambos também propuseram a aplicação imediata da nova interpretação aos processos em curso, com a ressalva de manter todos os atos praticados pelo STF e outros tribunais com base na jurisprudência anterior.

Na decisão de 2018, o Supremo manteve a ideia de que o fim do exercício das funções exige o envio dos autos para a primeira instância. Foi aberta uma exceção para ações em que a instrução processual já foi concluída. Nesse caso, a competência se mantém até o desfecho do processo.

Para Gilmar, isso subverteu a finalidade do foro por prerrogativa de função. Hoje, basta que o parlamentar não seja reeleito ou que o agente público se aposente para que seus atos praticados no exercício do cargo sejam julgados em uma instância diferente.

 

Na visão do relator, o entendimento atual “reduz indevidamente o alcance da prerrogativa de foro, distorcendo seus fundamentos”. A jurisprudência atual também é contraproducente, pois causa “flutuações de competência no decorrer das causas criminais” e traz instabilidade para o sistema de Justiça.

A exceção estabelecida para casos com instrução processual concluída foi criada para conter os riscos dos frequentes deslocamentos de ações entre diferentes instâncias. Mas, segundo o relator, ela não resolve o problema.

Isso porque ainda há brecha para alteração da competência por vontade do acusado. Um parlamentar pode, por exemplo, renunciar antes da fase de alegações finais para forçar o envio dos autos a um juiz que ele considere mais simpático aos interesses da defesa.

Natureza do crime

Por isso, o ministro sugeriu a interpretação de que o foro especial deve ser aplicado “em vista da natureza do crime praticado pelo agente, e não de critérios temporais relacionados ao exercício atual do mandato”.

Na lógica de Gilmar, se a diplomação do parlamentar, sozinha, não justifica o envio dos autos para os tribunais, o fim do mandato também não é razão para o retorno deles à primeira instância.

O decano do STF entende que o foro especial deve se manter mesmo após o fim do exercício das funções porque a saída do cargo “não ofusca as razões que fomentaram a outorga de competência originária aos tribunais”.

 

Na verdade, é justamente com o fim do mandato que os adversários do político têm “mais condições de exercer influências em seu desfavor, e a prerrogativa de foro se torna mais necessária para evitar perseguições e maledicências”.

Ainda de acordo com o relator, se o objetivo da prerrogativa de foro é garantir ao agente a tranquilidade necessária para “agir com brio e destemor, e tomar decisões, por vezes, impopulares”, não é certo que, após o desligamento do cargo, as ações penais contra ele saiam do colegiado que “reúne mais condições de resistir a pressões indevidas” e passem a tramitar na primeira instância da Justiça local.

O ministro ainda citou exemplos hipotéticos, como o juiz que recebe pedido de medidas cautelares contra políticos influentes no final de sua carreira e o governador que, no último ano do mandato, contraria interesses corporativos da magistratura ou do Ministério Público.

“Todos eles correm risco de retaliações devido a atos praticados no exercício de suas funções — risco que se agrava com o desligamento do cargo”, pontuou Gilmar. “Garantir a esses agentes a prerrogativa de serem julgados por juízes experientes, no tribunal escolhido pelo legislador, mesmo após a aposentadoria ou fim do mandato, parece ser a melhor maneira de preservar a liberdade de ação no desempenho das suas funções”.

 

Desde que foi enviado à Justiça Federal, o caso concreto de Marinho passou por deslocamentos frequentes. A denúncia foi oferecida e a ação penal tramitou por quase quatro anos no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por três anos na primeira instância do Pará e por mais dois anos na primeira instância do Distrito Federal.

Gilmar ressaltou que, após mais de uma década, a instrução processual ainda não foi concluída e nem mesmo houve interrogatório do réu. “Esse andar trôpego é um retrato sem filtro dos prejuízos que podem ser gerados pelo entendimento atual, que, com a devida vênia, traz instabilidade para o andamento das investigações e ações penais.”

 

Recalibragem

Gilmar havia enviado o pedido do senador diretamente ao Plenário por entender que a análise tem o potencial de “alterar, em parte, a orientação em vigor” desde 2018, e que o julgamento pode “recalibrar os contornos” do foro especial.

As discussões em torno do alcance do foro por prerrogativa de função voltaram a ganhar força por causa das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco.

O caso foi parar no Supremo depois que a Polícia Federal apontou a participação do deputado federal Chiquinho Brazão no assassinato. Ele seria um dos mandantes. Na época do crime, no entanto, era vereador na cidade do Rio de Janeiro.