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PARABÉNS ÀS DROGAS, QUE SEGUEM VENCENDO A GUERRA ÀS DROGAS

No mês passado a Alemanha decidiu regulamentar a produção e posse de maconha para consumo pessoal [1], ao tempo em que o Brasil vem adotando caminho diametralmente oposto, por meio da PEC do Racismo [2] (PEC 45/2023, que prevê como “mandamento de criminalização” a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins).

 

Então, decidi entrevistar um comerciante de drogas ilícitas, no caso, um traficante. Fosse vendedor de drogas lícitas, tais como álcool, tabaco e outras vendidas em drogarias, ele seria um mero comerciante. Ele será identificado pelo apelido Joe Prensadão.

Com a tranquilidade típica de quem sabe o que está falando, e há muito tempo no negócio, Joe abordou as diversas implicações relacionadas à guerra às drogas, descriminalização e regulamentação das drogas, especialmente da maconha, demonstrando vasto conhecimento de quem exerce o monopólio de um mercado gigantesco e altamente lucrativo.

 

O local escolhido por Joe para a entrevista será mantido em segredo, por motivos óbvios — embora habitualmente uma viatura da PM realize ronda pelo local, para manter a ordem — e os policiais, sempre solícitos, geralmente param para um cafezinho.

Afinal, Joe, por que o mercado do tráfico de drogas consideradas ilícitas é contra a descriminalização e regulamentação dessas substâncias, incluindo a maconha?

Joe — Temos que proteger as famílias, destruídas pelas drogas, e a descriminalização ou regulamentação fortalecerá o tráfico (sorriso irônico do entrevistado). Foi esse o argumento usado por um político ao votar a PEC 45 no Senado, não foi? [3]. O álcool e o tabaco são a desgraça, causam males mais severos que a maconha, e circulam no mercado. Então, na realidade, o tráfico é contra a descriminalização e regulamentação da maconha para manter o monopólio do mercado. Se é proibido, apenas nós vendemos, mais ninguém. E vendemos pelo preço que achamos justo. Mandamos no preço da maconha, da cocaína, e de tudo mais, como a Petrobrás determina o preço da gasolina no mercado interno. Inclusive, levamos em conta as flutuações do mercado internacional, como toda atividade transfronteira!

Mas não é arriscado? Disputa de território por traficantes, repressão policial, enfim…

Joe — Tudo é arriscado. João Guimarães Rosa diz que viver é perigoso demais… Esse mercado é realmente disputado e é violento, pois essa é uma atividade muito cobiçada. Vendemos com altíssima margem de lucro, não pagamos impostos e não precisamos cuidar da qualidade do produto. Ainda, exercemos nossa atividade sem qualquer tipo de controle do Estado ou da sociedade. Entre os traficantes, muitas questões são resolvidas com acordos, pois, afinal, todos querem controlar esse tipo de comércio, com o menor número de problemas possível.

 

Quando há desavença, alguma ruptura com a “ética” do negócio, não solucionada pelo diálogo, resolvem-se as questões com violência. Por isso a necessidade de nos armarmo-nos fortemente, estimulando o tráfico de armas. Esses, os traficantes de armas, são nossos parceiros, mas muitos traficantes como eu também se imiscuem nesse mercado, altamente lucrativo. Nesses casos, infelizmente, algumas pessoas inocentes acabam sendo vítimas. Esses são dois importantes efeitos colaterais, dentre outros, da política de guerra às drogas: armamentismo e a violência contra pessoas inocentes.

No que se refere à relação com os agentes das forças públicas de segurança, para que possamos trabalhar com uma relativa paz, parte significativa de nosso lucro serve para corrompe-los [4]. Pagamos esses agentes de segurança pública, tanto para que eles não nos incomodem, como também para evitar conflitos entre concorrentes, garantindo certa organização de território. Em alguns casos, eles intervêm com violência para manter a paz no negócio.

Outro dado importante, os agentes das forças públicas de segurança focam em prender os jovens negros. São esses jovens pobres, de periferia, os recrutados pelo tráfico. São conhecidos por “aviõeszinhos” e são as peças descartáveis do negócio. Por pouco dinheiro ou droga, eles se arriscam, sem direitos trabalhistas, sem previdência e sabendo, de antemão, que a morte ou a prisão pode ocorrer a qualquer momento.

 

Os prendendo, ainda que haja perda de dinheiro e algum prejuízo, o negócio não é prejudicado, pois a quantidade de drogas com eles apreendidas é geralmente baixa. Além de serem mão de obra barata, quando um é preso, facilmente há a substituição. É um sistema que funciona muito bem, para o tráfico. Quando os agentes de segurança pública agem, prendendo esse grupo de trabalhadores, o Estado informa números à sociedade, gerando, dessa forma, a impressão de eficiência da atuação policial, e justificando o aumento de recursos destinados à guerra. Esse número elevado de prisões, somando à divulgação pela imprensa sensacionalista, gera o sentimento de temor da sociedade, o que justifica o recrudescimento do poder de repressão. O sistema, como você vê, se retroalimenta.

Se descriminalizasse e regulamentasse as drogas ilícitas, essa violência não diminuiria?

Joe — Acredito que sim, pois haveria alternativas ao monopólio do tráfico. Mas a quem interessa a diminuição da violência? Essa violência é necessária para manter alguns nichos sociais sob controle, a pretexto de se combater o tráfico ilícito de drogas. Como dito na resposta à outra pergunta, os mecanismos estatais e sociais de vigilância, controle e punição encontram na “guerra às drogas” um excelente ecossistema para reprodução. Fala-se, ainda, em “reparação histórica” com a descriminalização.

 

 

Fernando Frazão/Agência Brasil

 

O Brasil não a teve nem com o fim da escravatura, e pouco — ou quase nada — se falava a respeito. Algumas inciativas, tais como demarcação de terras quilombolas e cota raciais são relativamente recentes e as políticas a respeito desse assunto são absolutamente insuficientes [5]. Agora, no que se refere às drogas, pauta intrinsecamente ligada ao racismo, seria arriscada a descriminalização e a regulamentação porque haverá, se isso ocorrer, forte pressão para a reparação história, sob as mais diversas perspectivas.

E sobre a qualidade das drogas que circulam, o tráfico se preocupa?

Joe — O mercado se preocupa com o lucro. Há um mercado destinado aos ricos e eles exigem e têm acesso a drogas de excelente qualidade. O lucro, neste caso, é alto, e geralmente a operação é mais sofisticada e sobre ela os agentes de segurança do estado, ou não agem, ou pouco agem, já que a clientela escapa do “filtro” racial que domina a guerra às drogas. Quanto à droga que circula na rua, nas “biqueiras” e “cracolândias”, não há nenhuma preocupação com a qualidade.

 

O importante é que a droga deixe o usuário “chapado”, ainda que isto lhe custe a vida. Esse cliente é fidelizado. Se descriminalizar e regulamentar, usuários em uso problemático de drogas terão acesso a bons produtos, inspecionados, tributados, etc., e ainda poderão acessar serviços de saúde específicos, caso necessário.

Ainda, outras formas de abordagem quanto à assistência à saúde de pessoas com problemas decorrentes do uso abusivo de drogas, como a redução de danos, seriam possíveis, o que é ruim para o meu mercado e também para o mercado da indústria farmacêutica. Além de tudo isso, se descriminalizar e regulamentar, a população pode ser educada, como aconteceu com o tabaco, desestimulando o consumo, estabelecendo regras de produção, distribuição, venda etc.

 

Quanto custa a “guerra às drogas”?

Joe  — Custa caro. Li que algo em torno de 15 bilhões por ano [6], mas garanto que meu mercado supera essa cifra [7].

Uma última fala…

Joe  — Como recentemente ouvimos de importante estudioso, referência sobre esse tema, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em 25/4/2024 [8]é preciso dar parabéns às drogas, que, por mais um ano, venceram a guerra às drogas. Agora preciso ir, pois os negócios me chamam.