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PROIBIÇÃO DO USO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS POR SUPOSTA VIOLAÇÃO À DESTINAÇÃO RESIDENCIAL DOS CONDOMÍNIOS

Desde 2021, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem proferido decisões que impactam diretamente aqueles que se utilizam de plataformas digitais em condomínios edilícios.

 

O primeiro caso analisado pela Corte foi o REsp nº 1.819.075/RS, distribuído para a 4ª Turma, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão.

Na ocasião, o condomínio havia proposto ação cominatória com o objetivo de obstar a utilização da plataforma Airbnb por uma condômina. Esse aresto tinha contornos específicos que merecem destaque: a proprietária, em situação financeira difícil, havia reformado há anos seu apartamento para melhor acomodação de pessoas. Isto é, ela adaptou o imóvel para a cessão do espaço ao maior número de pessoas que o ambiente comportava. Além disso, oferecia serviços como os de lavanderia e internet, com o fito de gerar maior atratividade.

 

À época, o ministro Luis Felipe Salomão votou no sentido de reconhecer a licitude da contratação realizada pela condômina e pela impossibilidade de se restringir a operação Airbnb, por violação ao direito de propriedade. Para o Ministro, o contrato realizado por meio das plataformas não pode ser qualificado como de hospedagem, dado que seria essencial ao tipo a oferta de um plexo de serviços, como limpeza, arrumação, restaurante, portaria, entre outros.

Em voto divergente, que se sagrou vencedor, o ministro Raul Araújo compreendeu que o uso das plataformas desvirtuaria a finalidade residencial do condomínio e que haveria um “contrato atípico de hospedagem”, porque inexistente, nas peculiares circunstâncias em que se dá a prestação do serviço, qualquer estrutura ou profissionalismo suficiente, exigidos pela Lei nº 11.771/2008.

Em razão das nuances do caso analisado, o ministro Antonio Carlos Ferreira destacou que entendia “não ser este o processo mais adequado para que dele se possa extrair uma abrangência maior e criar precedente específico sobre a questão envolvendo os aplicativos pelos quais os usuários oferecem seus imóveis para uso temporário (locação para temporada)”.

Segundo caso

O segundo caso, o REsp nº 1.884.483/PR, foi analisado pela 3ª Turma, sob a relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Diferentemente do primeiro, neste, a ação foi promovida por um condômino que visava a anular deliberação assemblear que inseriu na convenção de condomínio proibição de locação por prazo inferior a noventa dias.

 

O TJ-PR (Tribunal de Justiça do Paraná) reformou a sentença que havia julgado procedente a demanda para declarar nula a cláusula, compreendendo que o Airbnb é um contrato de hospedagem, o que violaria os artigos 1.228, § 1º e 1.336, IV, ambos do Código Civil. A ideia central acolhida pelo TJ é a de que o uso das plataformas colide com a destinação residencial do condomínio.

A decisão foi mantida pela 3ª Turma do STJ, consignando-se, na oportunidade, que seria lícita a vedação, pelo condomínio, da “locação” por prazo inferior a 90 dias.

Note-se, ainda, que a redação da cláusula não fazia qualquer distinção à utilização de meios físicos ou eletrônicos para a contratação, isto é, estar-se-ia vedando toda e qualquer forma de locação por prazo inferior a noventa dias, ainda que realizada por meio de imobiliárias, administradoras, ou diretamente pelo proprietário.

Com essas duas decisões da Corte, o STJ, em novos casos, reproduziu que “nos termos da jurisprudência desta Corte, existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, a exploração econômica de unidades autônomas mediante locação por curto ou curtíssimo prazo, ainda que sem fracionamento, implica desvirtuamento da destinação condominial”.

 

Interessante perceber que no primeiro caso analisado pelo STJ debateu-se a necessidade de uma deliberação assemblear para proibir o uso das plataformas. No segundo caso, com fundamento na violação à destinação residencial do condomínio, entendeu-se que o simples uso dessas plataformas seria obstado, ainda que inexistente regra proibitiva na convenção de condomínio.

Essa foi a tônica do julgamento do AgInt no AREsp nº 1.958.829/MG, em que, não obstante a ausência de norma que vedasse o uso das plataformas, o STJ manteve o acórdão do TJ-MG que compreendeu que a cessão do uso, pelas plataformas digitais, violava a finalidade residencial do condomínio.

O mesmo ocorreu na análise do AgInt nos EDcl no REsp nº 1.896.710/PR, oportunidade em que ficou consignado, novamente, que “existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV)” [1].

Mais recentemente, o mesmíssimo entendimento foi referendado no julgamento do AgInt nos EDcl no REsp 1.933.270/RJ. A ação, na origem, foi movida pelo condomínio, com o objetivo de proibir que um dos condôminos utilizasse a plataforma Airbnb. A sentença foi favorável ao condomínio, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro deu provimento à apelação do proprietário.

 

Em decisão monocrática, a ministra Isabel Gallotti deu provimento ao recurso especial do condomínio, decisão que foi confirmada pela 4ª Turma após interposição de agravo interno. Cabe registrar que nesse julgado não havia regra na convenção de condomínio que proibisse a utilização das plataformas pelos proprietários, tampouco houve a consignação, no voto, de que a rotatividade seria exacerbada, como no primeiro aresto analisado pela 4ª Turma.

Não houve grande digressão do colegiado a respeito do caso, limitando-se a relatora a reafirmar a posição de que o entendimento da Corte se dá no sentido de que o direito de propriedade deve se harmonizar com o sossego e salubridade dos demais condôminos.

Feito esse panorama de como o STJ decide sobre o tema, cumpre tecer algumas ponderações.

Ordenamento

A qualificação de um contrato pode ser definida como a operação lógica pela qual o intérprete, frente a um contrato concreto, reconduz, ou não, o instrumento negocial a um determinado tipo contratual [2]. Sendo assim, contratos típicos são aqueles que possuem uma disciplina jurídica prevista pelo ordenamento.

 

ConJur

 

Tanto a locação de imóveis urbanos, quanto a hospedagem, possuem regramentos próprios previstos pela legislação. Logo, a afirmação comumente utilizada pelos tribunais de que as plataformas geram contratos de hospedagem traria como consequência a aplicação das regras previstas na Lei 11.771/2008.

 

O artigo 23 da referida lei enuncia que “consideram-se meios de hospedagem os empreendimentos ou estabelecimentos, (…), destinados a prestar serviços de alojamento temporário, (…), bem como outros serviços necessários aos usuários, denominados de serviços de hospedagem, mediante adoção de instrumento contratual, tácito ou expresso, e cobrança de diária”.

Percebe-se que compõe o suporte fático do referido contrato a prestação de serviços necessários aos usuários, o que definitivamente não ocorre no uso das plataformas. Por mais que se possa oferecer, na plataforma, alguma modalidade de serviço, essa prestação não é obrigatória.

 

As plataformas parecem se aproximar mais da locação para temporada, muito embora, a depender de como se dá sua configuração — como pode ocorrer nos casos em que a cessão do uso se dá por prazo superior a noventa dias — o contrato poderá ser qualificado como atípico. A formulação de contratos atípicos é prática absolutamente lícita, consoante artigo 425, do Código Civil.

A locação para temporada possui regras específicas que não necessariamente serão observadas na contratação pela plataforma. É exemplo disso a faculdade de exigência, pelo locador, das garantias previstas no artigo 37, da Lei de Locações, que dificilmente ocorrerá numa cessão de uso de curta duração por meio das plataformas.

 

A presunção de prorrogação da locação por tempo indeterminado, prevista no artigo 50, da Lei de Locações, também não se aplica às plataformas, tendo em vista que a sistemática de cobrança do Airbnb é, a rigor, a diária. Por consequência, o proprietário do imóvel não estaria obrigado a aguardar trinta meses, ocorrida a prorrogação, para denunciar o contrato.

Em síntese, necessário admitir que a criatividade negocial ultrapassa o catálogo ofertado pela lei, de modo que novas e diferentes operações são realizadas e consolidadas sem que necessariamente haja um correspondente tipo previsto pelo ordenamento.

 

Ou, ainda, se se admitir que determinado contrato é típico, necessário que se repute que existem variações nos tipos. Segundo Pedro Pais de Vasconcelos, na avaliação do juízo de correspondência, as variações dão-se em um juízo de mais ou menos, e não de sim ou não [3]. Há, contudo, um limite do qual as partes não podem derrogar sem que desqualifiquem determinado contrato. Esse limite dá-se pela compreensão da operação econômica do contrato [4].

Esse cenário deveria levar os operadores do Direito a compreender a singularidade da operação econômica das plataformas, não as proibir com fulcro em regras que a elas não se aplicam.

 

Finalidade

Outro ponto de extrema cautela a ser repensado é o argumento segundo o qual seria possível coibir a utilização do Airbnb em razão da finalidade residencial do condomínio.

Em matéria de locação e condomínio, o que se compreende por “finalidade comercial” é a destinação que aquele imóvel terá, isto é, se será exercida, no espaço locado, alguma atividade comercial. Parece evidente que o usuário da plataforma não exercerá atividade econômica organizada, mas apenas fará uso do imóvel com o objetivo de gozar de férias, residir enquanto está a trabalho ou em estudo temporário.

 

O espectro do que é comercial toma por base a posição daquele que utilizará o imóvel e não daquele que cede o uso de forma temporária ou permanente. Afinal, a incorporadora que vende o imóvel e o locador que o loca evidentemente têm escopo de obtenção de lucro e nem por isso o adquirente de imóvel residencial e o locatário exercerão atividade comercial.

Dessa forma, parecer haver uma inversão do sujeito analisado, verificando apenas a atividade do proprietário do imóvel, em oposição ao entendimento vigente a respeito do que se entende por destinação comercial.

 

O olhar para o caso concreto é relevante para que não sejam criadas presunções, e os tribunais, de forma indistinta, comecem a aplicar as decisões do STJ como se precedentes vinculantes fossem. Na primeira decisão da 4ª Turma, ainda em 2021, o ministro Antonio Carlos Ferreira registrou, em seu voto, que aquele aresto não era o mais adequado para que se criasse um precedente sobre os aplicativos de uso temporário. Não obstante tal ponderação, parece-nos que isso é exatamente o que ocorreu.

 

Com isso, ignora-se que é extremamente comum em cidades turísticas a edificação de empreendimentos que, embora sejam residenciais, são voltados à exploração econômica, tanto para locação por temporada, quanto para uso das plataformas, locação residencial, bem como para futura venda. O mesmo ocorre em cidades que abrigam universidades, onde o fluxo de pessoas que entram e saem do local é expressivo.

Ademais, até o momento, a discussão do STJ pairou sobre condomínios edilícios, mas parece razoável que a mesma interpretação seja estendida aos condomínios horizontais.

 

Por fim, é de extrema importância pontuar a mudança legislativa trazida pela Lei 14.309 de 2022, que possibilitou a instauração de assembleias permanentes. Isso porque é cada vez mais comum, para evitar litígios, a convocação de assembleias extraordinárias para a alteração da convenção de condomínio, prevendo-se a proibição do uso das plataformas.

Contudo, como o quórum é expressivo para a alteração, não raras vezes é necessária a colheita de votos em sessões supervenientes. Nesse caso, a assembleia permanente deverá se realizar em até 70 dias da primeira, podendo ser prorrogada quantas vezes for necessário; a assembleia colocada em sessão permanente, porém, precisa ser concluída em até 90 dias.

 

Feitas essas considerações, é relevante que os usuários de plataformas, bem como os proprietários dos imóveis, atentem-se a novas mudanças de entendimento do STJ. Os fundamentos que sustentam o entendimento atual podem ser revistos e a questão pode ser levada ao Supremo Tribunal Federal, por envolver direito de propriedade (artigo 5º, XXII, da Constituição).

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).