A PRIVATIZAÇÃO DA SABESP E O DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO
Está em andamento o processo de desestatização da maior empresa brasileira de saneamento básico, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), o que — segundo o governo do estado de São Paulo — poderá elevá-la a maior empresa do mundo no setor [1]. Segundo dados da Sabesp, ela atua em 375 municípios do estado de São Paulo e atende 28,4 milhões de pessoas com abastecimento de água e 25,2 milhões com coleta de esgotos [2].
Ocorre que se observa uma intensa judicialização do processo legislativo (durante e após sua conclusão) necessário para a edição das leis que efetivamente autorizarão a transferência do controle acionário da empresa para o setor privado e a continuidade da prestação de serviços para os municípios por ela atendidos. Alguns dos principais argumentos utilizados para a judicialização são relacionados a possíveis violações ao devido processo legislativo.
A pergunta, portanto, que se coloca neste artigo é: como avaliar se houve ou não violação ao devido processo legislativo? Dada a complexidade do tema e do caso, o objetivo aqui é contribuir com o debate apontando para questões relevantes que deverão ser enfrentadas quando do seu exame judicial.
Embora outros municípios paulistas também já aprovaram ou estão em vias de aprovar suas leis a respeito, destacam-se duas leis ordinárias por sua importância: a) Lei do Estado de São Paulo nº 17.853, de 8 de dezembro de 2023 (“Lei Estadual”) e b) Lei do Município de São Paulo nº 18.107, de 2 de maio de 2024 (“Lei Municipal”).
A lei estadual basicamente a autoriza a desestatização da empresa e cria um fundo estadual (Fundo de Apoio à Universalização do Saneamento no Estado de São Paulo — Fausp). Ela foi fruto do Projeto de Lei (PL) nº 1.501, de 17 de outubro de 2023, de autoria do governador do estado. O PL foi acompanhado de pedido de tramitação urgente, nos termos do artigo 26 da Constituição do Estado, e de Exposição de Motivos, sintetizando em duas páginas as principais modificações propostas. Pouco mais de 30 dias depois, foi aprovado definitivamente pela Assembleia Legislativa, sancionado e promulgado como Lei nº 17.853, de 8 de dezembro daquele ano.
Essa lei foi impugnada perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) mediante a ADI 2340393-54.2023.8.26.0000, atualmente em tramitação. Para além das alegações de possíveis inconstitucionalidades materiais, alegou-se que a tramitação do PL 1.501/2023 violou o devido processo legislativo pelas seguintes razões relativas ao “açodamento” na apreciação da matéria:
a) falta de “discussão legislativa apropriada”, destacando-se que, além da supressão do exame colegiado de determinadas comissões temáticas, houve “sessão de votação absolutamente conturbada”, com ação da polícia militar dentro do plenário da Assembleia Legislativa do estado com gás lacrimogêneo e spray de pimenta, impedindo que parlamentares da oposição (especialmente os mais idosos e uma deputada gestante) retornassem ao recinto para participar dos trabalhos legislativos,
b) falta de envio à Assembleia Legislativa dos estudos então existentes no Poder Executivo do estado sobre a possibilidade e mérito da desestatização da Sabesp, violando os princípios da participação social e da regra da prévia estimativa de impacto orçamentário-financeiro do artigo 113 do ADCT, e c) falta de justificativa para a atribuição de urgência ao PL.
Já a lei municipal autorizou o município de São Paulo, na prática, a manter a prestação de serviços de saneamento básico pela Sabesp após sua privatização. Ela foi fruto do PL nº 163, apresentado em 19 de março de 2024, de autoria do Poder Executivo municipal.
Ainda durante a tramitação do PL 163/2024, foi ajuizada ação popular por um grupo de vereadores, questionando, entre outros, possível violação ao princípio da participação social no processo legislativo, pelo fato de haver inclusão do PL na ordem do dia da Câmara Municipal antes mesmo de finalizadas as audiências públicas por ela convocadas, além de apresentação de substitutivo pelo Poder Executivo em menos de 24 horas da data para sua discussão em Plenário. Por fim, questionou-se a falta de estimativa de impacto-orçamentário financeiro da proposição, nos termos do artigo 113 do ADCT.
Foi concedida medida cautelar para suspensão da votação do projeto pela Câmara Municipal [3], determinando-se a realização de todas as audiências públicas previamente convocadas e a apresentação das estimativas de impacto orçamentário-financeiro. Na sequência, foi apresentado parecer da Secretaria de Governo Municipal, no sentido de “não existir qualquer impacto orçamentário no projeto de lei, que apenas tem cunho autorizativo” [4].
Na sequência, após aprovação do projeto em plenário, houve nova medida cautelar suspendendo “os efeitos da votação do projeto de lei nº 163/2024”, pelo fato de as audiências e estudos de impacto não terem sido devidamente realizados [5], sendo essa decisão suspensa por decisão da Presidência do TJ-SP em suspensão de segurança, com base nos argumentos de que seus efeitos poderiam impedir a continuidade da prestação dos serviços de saneamento básico no município, não se admitiria o controle judicial material de constitucionalidade de projetos de lei e poderia haver perda do objeto da ação popular pela conversão do projeto em lei [6].
Impactos
Para além da ação popular, após a promulgação da lei municipal, foi ajuizada a ADI 2340393-54.2023.8.26.0000 no TJ-SP em que se aponta violação ao artigo 113 do ADCT. Embora a Prefeitura de São Paulo tenha encaminhado estudos no sentido da ausência de impacto orçamentário-financeiro, na ADI argumenta-se que haverá, potencialmente, impactos bilionários ao município decorrentes: a) da possível indenização de investimentos não amortizados ao final do contrato (até R$ 84 bilhões de impacto), b) do valor substancialmente inferior cobrado pela outorga da prorrogação da concessão em comparação com o cobrado por outros municípios paulistas (até R$ 20 bilhões de impacto) e c) outros possíveis impactos orçamentário-financeiros decorrentes da mudança da política tarifária, de distribuição de dividendos e da política de cessão de espaços da empresa para atividades de interesse público de lazer ao município de São Paulo.Além disso, na ADI argumenta-se que a tramitação do PL 163/2024 violou o princípio da participação social, previsto especialmente nos arts. 180 e 191 da Constituição do Estado de São Paulo. A despeito da realização de nove audiências públicas sobre o projeto, argumenta-se que elas foram concentradas em pouco mais de dez dias, havendo texto substitutivo apresentado após as audiências no dia da votação em plenário.
Para avaliar a situação acima relatada, inicialmente, reitera-se a proposta já feita em sede doutrinária de compreender o devido processo legislativo como projeção do princípio constitucional do devido processo legal que condiciona o exercício do poder político via legislação [7]. Tendo em vista suas diferentes dimensões de eficácia, o devido processo produz a rearticulação das normas do processo legislativo de modo que seus princípios constitucionais estruturantes (igualdade, participação social, publicidade, deliberação e eficiência) estabelecem estados ideais de coisas no que se refere ao modo de produção das leis na democracia representativa e deliberativa brasileira.
Diante de tal pressuposto, serão examinados três aspectos das discussões postas em juízo a respeito da constitucionalidade formal da lei estadual e da lei municipal.
A primeira delas é sobre a natureza do interesse juridicamente protegido pelo devido processo legislativo e sua tutela processual. Embora a jurisprudência atual do STF entenda pela possibilidade de parlamentares impetrarem mandado de segurança para tutela de direito próprio ao devido processo legislativo, trata-se, na verdade, da atribuição de legitimidade ativa extraordinária para tutela de normas cujo interesse de proteção extrapola o âmbito parlamentar e abarca toda a sociedade, interessada na produção de normas jurídicas legislativas.Essa compreensão permite claramente identificar que a tutela do devido processo legislativo não ocorre exclusivamente pela via do mandado de segurança. No caso da privatização da Sabesp, objetiva-se a tutela do devido processo legislativo seja em via preventiva (em relação à promulgação das leis) pela ação popular, seja em via repressiva (após a promulgação das leis) pela via do controle abstrato de constitucionalidade.
Especialmente no que se refere à ação popular, o caso é interessante, pois revela que, de um lado, é mantida a linha jurisprudencial do STF de que somente o parlamentar é titular de legitimidade ativa extraordinária para tutela judicial preventiva do devido processo legislativo e, de outro lado, ela exemplifica que essa legitimidade pode ser exercida por outras ações e não apenas via mandado de segurança. Isso é de grande importância, pois permite que outras questões, especialmente as probatórias (como, no caso concreto, as relacionadas à efetiva realização das audiências públicas e condições fáticas de debate e votação em plenário), sejam discutidas judicialmente para além da via estreita das provas pré-constituídas de “direito líquido e certo” em mandado de segurança.
A segunda questão relevante diz respeito ao princípio da participação social e sua relação com o devido processo legislativo. Trata-se de princípio constitucional estruturante do devido processo legislativo e que encontra expressões em diversas passagens do texto da Constituição Federal, destacando-se o recente acréscimo do parágrafo único ao seu artigo 193 pela Emenda Constitucional nº 108/2020. Ele exige que, idealmente, exista a maior participação social possível no momento de deliberação das proposições legislativas por canais informais e formais de interação entre representantes e representados.
Peculiaridade
No caso do estado de São Paulo, há uma peculiaridade. A Constituição estadual, em seu artigo 180, inciso II, e artigo 191, caput, aponta para um dever reforçado de participação social em matérias legislativas estaduais e municipais que tratem de desenvolvimento urbano e meio ambiente. Com base nesse dispositivo, há diversos casos do TJ-SP em que leis foram declaradas inconstitucionais pelo fato de seus processos de elaboração legislativa não terem permitido, na prática, uma “ampla e efetiva participação social” de diversas correntes sociais de pensamento [8]. Também o município de São Paulo, em sua Lei Orgânica (artigo 41, incisos VIII e IX), exige, no mínimo, duas audiências públicas durante a tramitação de projetos de lei que tratem meio ambiente e saneamento.
Diante desse cenário, deve ser ressaltado que tanto a lei estadual quanto a lei municipal foram precedidas de audiências públicas. Ocorre que, na linha da jurisprudência do TJ-SP, é necessária uma ampla e efetiva participação social de modo que diversas correntes de pensamento possam ser expressadas no debate legislativo. Além disso, conforme o princípio da publicidade do devido processo legislativo, exige-se que o texto normativo em debate possa ser conhecido de antemão pelos participantes do debate — parlamentares ou não.
Isso não significa que — ainda que desejável do ponto de vista político — do ponto de vista constitucional toda proposição e suas emendas tenham que ser obrigatoriamente submetidas a audiências públicas prévias, uma vez que os acordos políticos e ajustes de texto — inclusive em plenário — fazem parte da atividade política normal das democracias contemporâneas e são importantes instrumentos de flexibilidade do processo legislativo. De todo modo, caso a proposição sofra alterações significativas que alterem profundamente seu escopo e sentido, poderá haver a necessidade, constitucionalmente exigida, de novas rodadas de participação social formalizada como nas audiências públicas.
A terceira e última questão que se destaca no presente projeto é a possível violação ao artigo 113 do ADCT por falta das estimativas de impacto orçamentário-financeiro. Já há linha jurisprudencial estável do STF no sentido de que tal dispositivo se aplica a todos os entes da federação (tendo como leading case a ADI 5.816, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 26/11/2019) [9]. Trata-se de verdadeiro requisito de constitucionalidade formal das proposições legislativas, de modo que não basta as estimativas serem feitas a posteriori em relação à aprovação do ato legislativo, pois devem ser apresentadas durante a tramitação legislativa para permitir a tomada de decisão bem-informada e publicamente justificada.
Novamente embora desejável do ponto de vista político, não decorre do artigo 113 do ADCT a exigência da realização de uma completa Análise de Impacto Legislativo. Exige-se sim a estimativa de impactos orçamentário-financeiros para os entes públicos acompanhada da metodologia de cálculo, ainda que relativamente simples, com a indicação dos benefícios esperados para justificá-los.
Além disso, há ainda a necessidade de se ter em conta a necessária margem de discricionariedade epistêmica dos legisladores para avaliar quais são prováveis impactos das medidas legislativas e quais possíveis impactos são remotos ou de pouca probabilidade para então exigirem-se as estimativas do artigo 113 do ADCT. No caso concreto, trata-se de avaliar se a lei estadual e lei municipais produzirão impactos orçamentário-financeiros que poderiam ter sido razoavelmente antecipados e examinados durante a discussão legislativa, como destacado acima.
As considerações acima revelam a complexidade do tema e as diferentes perspectivas pelas quais se podem compreender a eficácia do devido processo legislativo. Sem o objetivo de esgotar a análise do caso concreto da privatização da Sabesp, o objetivo aqui foi demonstrar possíveis critérios a serem utilizados para a análise judicial aprofundada do caso que será feita no TJ-SP e, possivelmente, em grau recursal pelo STF (Supremo Tribunal Federal).