DESMATAMENTO, USO DA TERRA E DESREGULAÇÃO FOMENTAM LITIGÂNCIA CLIMÁTICA NO PAÍS
A escalada do desmatamento durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL) e as desregulamentações sobre o uso da terra e a preservação da vegetação nativa fizeram com que os anos de 2020, 2021 e 2023 registrassem os maiores números de distribuição de ações da chamada litigância climática — processos que, direta ou indiretamente, envolvem as mudanças no clima e o aquecimento global.
Os dados compilados pelo projeto Juma, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), mostram que correm na Justiça brasileira 82 processos relacionados a essa matéria. Desses, mais da metade (47) é sobre o uso da terra e florestas, e 53 (64%) deles foram distribuídos durante a gestão do capitão reformado na Presidência da República.
O setor agropecuário, por causa da supressão de vegetação, responde por nove processos de litigância do clima; já a matéria de energia é apontada em 27 processos. A maior parte deles é relacionada à concessão de áreas para exploração de petróleo e tem como polo passivo autarquias como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Petróleo (ANP).
Por causa da tragédia climática do Rio Grande do Sul, aliada a perspectivas pouco otimistas em relação ao arcabouço legal ambiental do país, a tendência é que a litigância climática cresça e abarrote ainda mais o Judiciário brasileiro. Há, no entanto, meios para conter esse avanço, e eles incluem a regulação do mercado de carbono e o aumento da eficácia do Código Florestal, conforme afirmaram os especialistas entrevistados pela revista eletrônica Consultor Jurídico sobre o tema.
A relação dos estudiosos do assunto com o Código é complexa. À época da sua aprovação, em 2012, parte dos ambientalistas se colocou de forma contrária ao projeto por enxergar excesso de permissividade, ainda que considerasse seu texto avançado. Depois da promulgação, no entanto, esse mesmo grupo passou a defender sua aplicação de forma rigorosa para tentar amenizar as perdas, o que não foi feito por nenhum governo, fosse ele mais à esquerda ou mais à direita.
Anistias e prorrogações de prazos para regularização ambiental — um dos principais pontos do Código — distorceram a eficácia da norma, que nunca foi cumprida integralmente. E todos os governos, desde a aprovação da lei, sancionaram normas para postergar os prazos de adesão à regularização ambiental (PRA), que é o instrumento mais importante para verificar o tamanho das áreas desmatadas no país. A última delas foi aprovada em junho do ano passado pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
“Os fatos podem ser distorcidos, mas eles estão aí. As catástrofes estão se multiplicando. Então a natureza está respondendo da forma mais trágica possível. Esse aumento de episódios, somado à maior comunicação, informação em relação a isso, tem propiciado um alavancamento da judicialização climática”, diz o advogado e desembargador aposentado Ingo Sarlet.
Os governos estaduais também têm sua dose de responsabilidade, porque cabe a eles fiscalizar, analisar e validar os cadastros ambientais das terras.
“Essas modificações foram claramente de flexibilização de padrões. No resto dos estados e municípios também está ocorrendo essa mudança. Existe uma brecha aberta no Código Florestal no sentido de permitir que se façam ajustes na redução dos níveis de cobertura das matas ciliares, por exemplo”, afirma Sarlet, citando um ponto que tem relação com a atual situação do Rio Grande do Sul, tendo em vista que esse tipo de vegetação poderia ter ajudado a absorver a água que inundou a maior parte do estado.
Além de turvar a visão dos gestores públicos, tendo em vista que mascara a real situação da vegetação nativa no país, o não cumprimento da norma ainda reforça a negligência em relação ao desmatamento ilegal, que é o fio condutor de tragédias climáticas como a que se observa no sul do país.
“Se pensarmos em recuperação de áreas de preservação permanente, aquelas que estão nas margens dos rios, manguezais etc., existe um imenso déficit de vegetação. O Código Florestal determina a recuperação desse ativo, e ele não se dá, ou se dá em passos muito lentos, levando em conta o tamanho do desafio. São milhões de hectares”, observa o advogado Oscar Graça Couto, que lidera a área de Direito Ambiental do escritório Graça Couto Advogados.
Regulação ou morte
A política pública mais citada pelos especialistas para amenizar a ineficácia do Código Florestal — e, de alguma forma, tentar combater as mudanças climáticas e a litigância — é a regulação do mercado de emissões de carbono, cujo projeto tramita no Congresso e é relatado pela senadora Leila Barros (PDT).
De acordo com o texto, todas as empresas que possuírem atividade que emita mais de 25 milhões de toneladas de CO² por ano terão de compensar a poluição que geram com créditos de carbono (para todos os fins, cada crédito equivaleria a uma tonelada de CO²).
A criação de um mercado regulado no Brasil (hoje já existe um mercado voluntário, em que as empresas atuam por iniciativa própria) poderia equilibrar a equação que envolve desenvolvimento e preservação. O comércio regulamentado vai ampliar necessariamente a demanda por esses títulos e pode preencher uma lacuna do Código Florestal para incentivar a regulação das terras, já que, grosso modo, quem preservar será remunerado e quem poluir (ou, no caso do Brasil, desmatar) terá de compensar financeiramente o Estado.
Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos e na Europa, que têm emissões concentradas em queima de combustíveis fósseis e geração de energia, no Brasil a emissão de gases está diretamente relacionada ao uso da terra, seja no manejo ou na agropecuária.
“Na realidade, a legislação brasileira precisa evoluir, inclusive criando dois mecanismos que são os principais instrumentos jurídicos para combater o aquecimento global: a tributação sobre o carbono e um mercado de cap and trade (mercado de emissões) no Brasil. É importante colocar preço no carbono”, diz o juiz federal Gabriel Wedy, estudioso das mudanças climáticas. “A vantagem desse imposto do carbono é que pega todos os maiores emissores.”
A falta de regulação tem gerado prejuízos ao país, tanto pela perda da oportunidade de arrecadação quanto pelos gastos que o Judiciário tem de absorver por causa de um mercado ilegal que galopa. Somente em um caso do que está sendo chamado de “grilagem de carbono” (venda ilegal de crédito), há cinco ações civis públicas ajuizadas pela Defensoria Pública do Pará na cidade de Portel.
Nesse caso, a emissão dos créditos tem relação com a preservação da vegetação nativa do terreno, o manejo sustentável e o consequente aumento de estoques de carbono na floresta. A despeito de ter sido certificado pela Verra, empresa americana conhecida por dar lastro aos créditos, a Defensoria alega que o negócio foi feito em terras públicas sem autorização (por isso o termo grilagem) do governo paraense e das comunidades ribeirinhas que ali habitam.
Esses créditos têm valores milionários e, ao serem certificados por empresas estrangeiras, passam a ter lastro para comércio. As empresas que têm de compensar suas emissões os adquirem e, em tese, colaboram para um ciclo de preservação. Porém, com esse novo modelo criminoso, não só a emissão persiste, como o que deveria ser preservado é, na verdade, grilado para interesses particulares.
A situação é tida como gravíssima pela Defensoria paraense, já que o acordo firmado pelos supostos grileiros tem duração de 30 anos. A ação, que tem valor de causa de centenas de milhões de reais, tramita na Vara Agrária de Castanhal (PA). Ainda não houve sentença.
“A maior contribuição do Brasil para o problema se dá por conta do uso alternativo do solo. Essa, no sentindo inverso, também pode ser a nossa maior contribuição positiva para o clima. Se nós interrompermos esse processo clandestino, nós vamos recuperar nosso papel, o papel das florestas (na redução da emissão de carbono), incrementando a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos”, diz Graça Couto, para quem o mercado de carbono oferecerá um estímulo para boas práticas que hoje não são adotadas.
Suprindo as omissões
O Poder Judiciário brasileiro já tomou decisões no sentido de reconhecer o direito a um ambiente equilibrado como um direito humano — criando jurisprudências como o in dubio pro natura, que respalda a inversão do ônus da prova em casos de dano ambiental (cabe à empresa comprovar que seu empreendimento não vai gerar prejuízos ao meio ambiente), e o reconhecimento de um dano moral ambiental. O ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, que em breve vai assumir a presidência da corte, teve papel fundamental para que as violações ambientais fossem reconhecidas como dano à coletividade.
Nos Recursos Especiais 1.356.207 e 1.198.727, por exemplo, o STJ consolidou essa perspectiva. Tribunais estaduais também têm proferido decisões no campo da litigância climática, fazendo menções ao Direito Climático implícito na Constituição. Os temas julgados vão desde a proteção de áreas de preservação até contestações de programas de incentivo à indústria automotiva, que ampliam as emissões e influenciam no aquecimento.
“STJ e STF têm feito sinalizações contundentes em relação a questões ambientais e, em especial, climáticas. É uma questão de solidariedade geracional, tendo por alcance não só as atuais gerações, mas também as futuras”, diz Graça Couto. “Há um entendimento no sentido de que essa é uma questão de tamanha grandeza que não deve ser atribuída somente aos tribunais, mas ao Legislativo e ao Executivo.”
O advogado afirma que a atuação do Judiciário tem relação com a ausência normativa e a inépcia dos outros poderes. E essa atuação se tornou ainda mais importante após as duas últimas eleições parlamentares, que resultaram em um Congresso cujas pautas não têm relação com as demandas sociais mais urgentes.
Ingo Sarlet credita o aumento da litigância climática “especialmente à omissão legislativa, como por exemplo quando o Senado retoma discussão sobre PEC que pode privatizar praias”.
“Há proibição do retrocesso pela Constituição brasileira, ou seja, toda medida que afeta um direito fundamental é, em princípio, inconstitucional.”
Outro ponto é que as empresas passaram a ser questionadas sob outra vertente, além da emissão de crédito de carbono. O Judiciário tem sido instado a decidir como será feita a reparação do ponto de vista do licenciamento, aspecto que tem sido atacado por legislações federais e estaduais, como no Rio Grande do Sul.
“No momento em que as políticas públicas falham, no momento em que o Estado falha nas suas três esferas, na esfera municipal, na esfera estadual e na esfera federal, e as próprias atividades das empresas emissoras não são reguladas adequadamente, e essas passam a emitir gases de efeito estufa e a poluir o meio ambiente, o Poder Judiciário pode, sim, vir a decidir causas que responsabilizem esses potenciais réus”, assinala Gabriel Wedy.
Processo estruturante
Um dos maiores nomes do Direito Ambiental brasileiro, o advogado Édis Milaré acredita que a litigância climática será uma consequência inevitável da tragédia que castiga o Rio Grande do Sul desde o fim de abril, mas ele faz um alerta: não será por meio de processos tradicionais — a velha “briga de X contra Y” — que o problema será resolvido. Segundo o sócio do escritório Milaré Advogados, uma catástrofe desse tamanho exige uma nova maneira de acionar o Judiciário, que ele chama de processo estruturante.
Nas palavras de Milaré, “a questão deve ser resolvida trazendo-se para a mesa de discussões, sob a fiscalização do Poder Judiciário, todos os atores passíveis de serem ouvidos, de serem envolvidos, para se buscar uma decisão de cunho estruturante, ou seja, para que se diga o que pode e o que não pode ser feito, de que forma vai ser feito e quais são os corresponsáveis por fazer isto ou aquilo”.
Como exemplo, o advogado cita o caso de empresas carboníferas da cidade de Criciúma (SC) que eram acusadas de poluir o lençol freático local. Segundo ele, todas as partes envolvidas com o problema (empresários, população e Ministério Público, entre outras) foram chamadas pelo Judiciário para buscar uma solução que atendesse a todos os interesses, e uma solução foi encontrada. “Foi o primeiro grande caso de processo estruturante, e acabou sendo muito bem resolvido.”
Na opinião de Milaré, a apresentação de um sem-número de ações contra municípios gaúchos, o governo estadual e a União — ou seja, o jeito tradicional de litigar — só vai servir para entupir o Judiciário e deixar as vítimas da tragédia sem soluções com a rapidez de que elas precisam.
“Aquele pinga-pinga de ações pulverizadas vai sobrecarregar o Judiciário e levar a decisões que demandarão um tempo que nós não temos, que o povo do Rio Grande do Sul não tem. Nós precisamos ter criatividade para propor medidas estruturantes para resolver um problema que é deveras complexo”, afirma Milaré. “Sem isso, não vejo como se tornar realidade a chamada litigância climática, que é o chamado a um processo diferenciado para a resolução de um problema também diferenciado e complexo.”