CRIMES FISCAIS E CONTINUIDADE DELITIVA: ANÁLISE DO REQUISITO TEMPORAL
O Direito Penal é dinâmico e sofre uma interpretação evolutiva focada cada vez mais na responsabilidade subjetiva, com repúdio a fórmulas prontas e acabadas. A CF de 1988 inseriu a dignidade humana como vetor hermenêutico e introduziu a Teoria Constitucional do Direito Penal.
A partir da dignidade humana, partem diversos princípios constitucionais específicos, tais como proporcionalidade, fragmentariedade, responsabilidade subjetiva, exclusiva proteção do bem jurídico, moldando o que a doutrina convencionou chamar de Direito Penal Constitucional.
No que diz respeito à sua repercussão sobre o crime continuado, não mais se admitem parâmetros rígidos de verificação das condições objetivas de tempo, tornando-se fundamental a postura consciente e finalística do autor frente ao conjunto de delitos realizados.
Assim é que, segundo Jeschek: “Não se podem desconhecer os perigos de uma dogmática reduzida a fórmulas abstratas: eles estão no fato de que o juiz passe a confiar no automatismo dos conceitos teóricos, não atentando, portanto, às peculiaridades do caso concreto” [1].
No mesmo sentido, Schaffstein alerta para o enfrentamento do problema valorativo, a partir de considerações político-criminais, ficando a dedução lógico-dogmática para um controle complementar [2]. No caso específico do crime continuado, merece destaque a precisa lição do ministro Assis Toledo, presidente da comissão que elaborou a reforma da parte geral do CP de 1984:
“A lei, no Brasil como em outros países, não nos oferece critério infalível para a identificação da unidade da continuidade delitiva, na presença de ações múltiplas. (…) Assim, para a continuidade delitiva, torna-se indispensável, a meu ver, que os vários atos criminosos se apresentem enlaçados, os subsequentes ligados ao primeiro (art. 71 do CP).” [3].
Critérios de aferição
Por essa razão, os critérios de aferição do requisito temporal não podem se limitar ao número de dias ou meses que separam uma ação da outra e não se restringem ao critério cronológico. É o caso, por exemplo, do caixa de uma agência bancária, que desvia durante anos uma pequena quantidade de dinheiro da contabilidade, vendo sentido no valor total resultante da ação após o longo transcurso temporal.
A vinculação subjetiva do autor com o conjunto da obra delitiva é o fator preponderante sobre o número de anos, para fixar a continuidade delituosa. O caixa bancário receberia, se somadas suas condutas, uma pena de 1.825 anos pelos 5 anos de subtração diária, o que seria injusto, já que, em sua mente, as práticas criminosas vinculavam-se a um mesmo contexto final. Daí porque, a prefixação de tempo não mais se coaduna com o atual estágio de evolução de nossa ciência. Magalhães Noronha, sempre preciso, ensina que: “(…) a conexão temporal não está subordinada a prazo certo e preciso (…) será então necessário recorrer-se à unidade de resolução, para se apurar a unidade do aspecto material do delito” [4].
Rogério Greco, invocando Ney Moura Teles, nos lembra: “como mensurar essa quantidade de tempo, com base em quais critérios? Este problema é de difícil solução. Não se pode realizar a análise meramente aritmética, mas entre os crimes deve mediar tempo que indique a persistência de um certo liame psíquico que sugira uma sequência entre os dois fatos” [5].
Santiago Mir Puig também assim se orienta: “La unificación de las distintas acciones puede tener lugar…por la existencia de un plan preconcebido, lo que equivale ao dolo conjunto y supone uma unificación puramente, sin que importe la ocasión…”. [6]
A unidade de ocasião está intrinsicamente vinculada ao aproveitamento consciente do autor da infração penal, fazendo que ele queira continuar se aproveitando das facilidades geradas pelas ações anteriores. Esse encadeamento causal volitivo, consciente e finalístico é que define o que se vem a entender por similitude de condições de tempo e espaço.
O fator decisivo não é o objetivo, mas a postura psicológica de aproveitar-se das mesmas circunstâncias o que, tal e qual no exemplo clássico do caixa do banco. Anibal Bruno afirma não ser sequer necessário que a condição de tempo e lugar seja sempre a mesma, sendo que a consideração total do fato criminoso é que permite concluir pela continuidade delitiva ou não [7].
Essa nova postura, atualizando a ultrapassada visão do legislador de 1940 evita, por exemplo, no caso dos crimes contra a ordem tributária, normalmente derivados de ações reiteradas, que as penas somadas resultem em punição muito superior a crimes hediondos como estupro, homicídio qualificado, extorsão mediante sequestro com resultado morte etc.
A conjugação do elemento subjetivo com o princípio da proporcionalidade resulta na justa retribuição ao infrator. No que tange aos delitos tributários, que pressupõem uma ação continuada devido à constante periodicidade da ação fiscal, o requisito subjetivo avulta em importância, na medida em que a própria relação entre contribuinte e fisco é marcada pela constância.
Muito mais do que o critério mecânico de blocos temporais, a postura subjetiva do autor, enxergando no conjunto reiterado de ações um único contexto, torna-se decisiva para a configuração do crime continuado. Ney Fayet Júnior afirma que:
“(…) não se deve adotar um critério cerrado, inflexível ou invariável em sua interpretação, senão um que se mostre consentâneo aos motivos pelos quais a legislação incorporou a figura do crime continuado: permitir um apenamento justo (à luz de uma orientação político-criminal) e humanitário (à luz dos modernos postulados de um Direito Penal liberal e dos direitos humanos).” [8]
Jurisprudência
Nesse sentido, a jurisprudência dos Tribunais Superiores: “A inserção sucessiva e continuada de informações falsas nos registros contábeis de sociedade empresária, com o fito de suprimir tributos, caracteriza uma pluralidade de crimes a ensejar a continuidade delitiva (art. 71 do Código Penal). In casu, as condutas delitivas se deram ao longo de quase quatro anos, totalizando quarenta e quatro vezes o crime fiscal, o que respalda o acréscimo de 2/3 [9].
E ainda: “Consoante a jurisprudência desta Corte, no caso de tributo apurado e não recolhido mensalmente, em meses contínuos, cada lançamento tributário constitui uma infração penal e torna possível o reconhecimento da continuidade delitiva”. [10] Do mesmo modo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região: “Apesar da distância temporal entre os crimes, não se afasta a continuidade delitiva, já que os fatos narrados na denúncia não poderiam ocorrer em periodicidade menor”. [11]É de se concluir, portanto, pela superação do obsoleto critério de prefixação rígida do intervalo de tempo para fins de continuidade delitiva, tais como, “um mês” ou “três meses” entre uma infração e outra. Ainda mais nos crimes contra a ordem tributária, nos quais o legislador fez clara opção prioritária pelo recebimento do tributo, em detrimento da punição, permitindo, inclusive, a extinção da punibilidade com o pagamento do tributo.
Neles, o crime continuado surge como um desdobramento do princípio da proporcionalidade, evitando penas demasiadamente intensas. Além disso, não se pode ignorar a natureza continuada e periódica das relações entre contribuinte e Fisco, as quais se renovam a todo instante durante anos.
Priorizar fórmulas inflexíveis de intervalo de tempo para afastar o benefício do crime continuado, acarretaria inadequada aplicação da regra do concurso material, com penas muito superiores às impostas para crimes hediondos, por exemplo. Tal solução colide frontalmente com a CF e com os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e dignidade humana.
A partir da nova ordem constitucional, a moderna dogmática moldada pela perspectiva funcionalista teleológica, pressupõe a união do tecnicismo com as estratégias de política criminal, exigindo soluções jurídicas compatíveis com os princípios constitucionais e contrárias à responsabilidade objetiva.