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FUNCIONALISMO TELEOLÓGICO, OFENSIVIDADE E POLÍTICA CRIMINAL

A partir da nossa Constituição de 1988, o princípio da dignidade humana passou a atuar como vetor hermenêutico, com a política criminal assumindo o novo papel de atuar como critério de normatividade e, portanto, integrar a ciência jurídica como componente dogmático.

Spacca

 

A partir dos estudos de Claus Roxin, no início dos anos 1970, a pauta sociológica integrou-se à ciência jurídica, suplantando o dogma positivista de que crime é o que está previsto em lei e ponto final. Essa nova perspectiva preocupa-se em buscar a melhor solução para o caso concreto, sem as amarras do cientificismo jurídico, cujos dogmas absolutos acabam virando um fim em si mesmos.

Na Alemanha, esse novo método de interpretação “surgiu na década de 1970, fruto de estudos e pesquisas de penalistas alemães, preocupados em submeter o rigor da bitolada e bizantina dogmática aos fins do direito penal. Para não se tornar uma ciência hermética, reclusa em bibliotecas distantes da realidade social, o sistema deveria abrir-se, deixando a adequação típica de ser um procedimento exclusivamente científico. A dogmática e o tecnicismo jurídico cedem espaço à política criminal e à função pacificadora e reguladora dos comportamentos sociais. A perfeição das ideias técnico-científicas cede espaço ao cumprimento das funções sociais do Direito Penal” [1].

 

Essa visão começou a ser aceita pela doutrina no Brasil, com o surgimento da Teoria Constitucional do Direito Penal, alicerçada nos princípios constitucionais penais e orientada pela política criminal.

No limiar do terceiro milênio, a Constituição Federal e os princípios dela decorrentes devem assumir um papel de protagonismo na aplicação do direito penal, relegando a lei (o tipo legal) à sua correta posição de subalternidade em relação ao Texto Magno. A Teoria Constitucional do Direito Penal é, portanto, uma evolução em relação às anteriores e permite ao Poder Judiciário exercitar controle sobre o que o legislador diz ser crime, tornando o juiz um intérprete e não mero escravo da lei. A atividade jurisdicional passa a assumir um protagonismo na aplicação da norma penal e não mera coadjuvância burocrática de segunda categoria. Essa deve ser a tendência no início do século XXI, suplantando-se a linha positivista despreocupada com o conteúdo da norma, que tanto predominou até bem pouco tempo” [2]. (destacamos).

A tendência mundial é prevalecer os fins estratégicos do Estado na solução dos conflitos, em detrimento do cientificismo puro, que nada mais representa do que um fim em si mesmo. Qualquer decisão contrária à estratégia de política criminal delineada pelo Estado passa a carecer de juridicidade. Nesse sentido, Claus Roxin:

As transformações da política criminal e de nossa consciência metodológica ocorridas nos últimos anos precisam transformar consigo o sistema de nossa parte geral, se ele quiser manter sua capacidade de rendimento, de forma que, neste campo, estamos sempre outra vez no começo.” [3] (destacamos).

 

Na mesma linha, H.H. Jeschek: “Não se podem desconhecer os perigos de uma dogmática reduzida a fórmulas abstratas: eles estão no fato de que o juiz passe a confiar no automatismo dos conceitos teóricosnão atentando, portanto, às peculiaridades do caso concreto. O essencial é sempre a solução do problema; exigências sistemáticas, por serem menos importantes, devem recuar para um segundo plano” [4]. (destacamos).

Schaffstein, por seu turno, pondera a necessidade de se orientar pelas considerações político-criminais, para, só então, utilizar métodos de dedução lógico-dogmática para controle complementar [5].

A ofensividade ou lesividade baseia-se no princípio de que não há crime sem lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal — nullum crimen sin iniuria. Como ensina Luiz Flávio Gomes:

O princípio da ofensividade é um dos eixos em torno dos quais gira o direito penal (leia-se: o ius poenale). O princípio da ofensividade, como limite (ou critério) do ius poenale então significa que ao juiz compete descobrir, depois de verificada a subsunção formal da conduta à letra da lei, qual o é o bem jurídico (qual é o valor) protegido e se esse bem jurídico foi concretamente afetado (lesado ou posto em perigo). Só assim pode-se falar em tipicidade (em sentido formal).” [6]

 

A função do direito penal é proteger os valores mais relevantes da sociedade, não podendo servir como pauta ideológica, política ou promocional. Nilo Batista, ao enfocar a perspectiva funcionalista do direito, observa que: “As condutas desviadas que não afetam qualquer bem jurídico não pertencem ao âmbito da tutela penal” [7].

A ofensividade cumpre a função dogmática de repelir qualquer punição baseada unicamente no desvalor da ação, sendo imprescindível um resultado jurídico relevante. “Não se afina com nosso direito positivo a postura doutrinária que procura fundamentar o injusto penal, exclusiva ou prioritariamente, no desvalor da ação.  Não basta a conduta e seu desvalor para a existência do crime. Fundamental é a existência do resultado” [8].

Damásio de Jesus ensina que o Direito Penal só deve ser aplicado quando a conduta ofende um bem jurídico, provocando-lhe um dano ou um perigo real, concreto (nullum crimen sine injuria). Como consequência, não seriam admitidos os crimes de perigo abstrato, isto é, aqueles em que o legislador se limita a descrever uma conduta, presumindo-a perigosa [9]. A atuação penal pressupõe um efetivo ataque a um interesse socialmente relevante, isto é, o surgimento de, pelo menos, um real perigo ao bem jurídico [10].

 

Por isso, Asúa Batarrita observa que: “La pena es el precio necesario para impedir daños mayores y sólo en ello encuentra su justificación. Por ello, el castigo no deberá ser un homenaje gratuito a la ética, religión o al sentimiento de venganza, sin una amarga necesidad” [11]. (destacamos).

Bem jurídico

Não há mais como se conceber, em tempos atuais, um Direito Penal desvinculado da análise do bem jurídico, de modo que esse passa a ser o critério reitor para toda e qualquer repercussão de natureza criminal, seja para configuração do fato típico, seja para reger a retribuição penal ao delito praticado.

Do quanto exposto, a primeira etapa do operador do direito na identificação de um fato típico é verificar qual o bem jurídico tutelado pela norma, ou seja, qual sua objetividade jurídica, identificando o interesse social que a lei pretendeu proteger. No homicídio, a lei protege a vida humana extrauterina, no sequestro, a liberdade, no furto, o patrimônio, no falso, a fé pública, no tráfico de drogas, a saúde pública e assim por diante.

Feita a identificação, a segunda etapa é aferir se, no caso concreto, a conduta humana chegou, pelo menos, a colocar em risco real aquele interesse protegido, caso contrário, não haverá crime, por ausência de ofensividade. Tanto quanto a adequação formal da conduta à descrição legal do crime, importa analisar se efetivamente houve algum perigo de lesão ao bem jurídico, somando-se, por imperativo constitucional, a tipicidade formal com a material.

 

Crime tem que ter forma e conteúdo. Sem perigo real e concreto ao bem jurídico, surge a figura do crime impossível (CP, artigo 17). Assim, tentar matar um adulto com um palito de fósforo, falsificar grosseiramente um documento, praticar ato obsceno em local ermo e deserto são hipóteses de crime impossível por ausência de ofensividade.

O direito penal não é mais uma ciência erudita de biblioteca, mas um método de solução de conflitos que verdadeiramente ameacem a sociedade, buscando nos princípios constitucionais, na política criminal e na ofensividade sua estrutura e sua modulação.