A TAXA DAS BLUSINHAS E O JOGO DE XADREZ REGIMENTAL NO SENADO
No dia 5 de junho de 2024 foi aprovado no Senado o Projeto de Lei (PL) nº 914, de 2024, que “Institui o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Programa Mover)”. A grande questão relacionada a esse projeto concernia a uma emenda incorporada pela Câmara dos Deputados, que incluiu no texto a possibilidade de incidência de imposto de importação sobre compras estrangeiras de até US$ 50, ficando conhecida na mídia e nas redes como “taxa das blusinhas”. Quem acompanhou o seu processo de deliberação no Plenário do Senado presenciou várias estratégias regimentais postas pela situação e oposição em defesa de seus interesses.
Preliminarmente, deve-se destacar que esse PL não teve despacho para comissões, fato pouco usual no Senado. Todas as matérias, em regra, são submetidas a uma etapa instrutória e, em seguida, despachadas às comissões competentes para que esses órgãos, divididos por especialidades temáticas, examinem a proposição de maneira mais esmiuçada, fornecendo-lhes, ao final, um parecer. Todavia, no caso, foi apresentado um requerimento de urgência para que a matéria fosse submetida à imediata deliberação do Plenário. Nessas situações, a etapa instrutória do processo se dá de maneira mais curta e acelerada, sendo designado um senador relator para proferir o parecer sobre a matéria diretamente em Plenário.
Ao apresentar seu relatório, na terça-feira, dia 4 de junho, o relator designado, senador Rodrigo Cunha, manifestou-se de maneira favorável a várias das emendas apresentadas por seus colegas, sendo uma delas uma emenda supressiva (Emenda nº 3, de autoria do senador Mecias de Jesus) que retirava os dispositivos referentes à “taxação das blusinhas”. O argumento principal para o acatamento foi o respeito ao “devido processo legislativo”, que vedaria a inclusão de assuntos estranhos à matéria principal da proposição. Lido o relatório, alguns senadores declararam-se “surpreendidos” pelo acatamento dessas diversas emendas e, apesar de a urgência já ter sido aprovada, solicitaram o adiamento da matéria para a Ordem do Dia da sessão seguinte, para terem mais tempo para estabelecerem acordos.
Processos de votação
A matéria retornou à pauta da sessão de quarta-feira, dia 5 de junho, e a partir daí começa o jogo de xadrez regimental entre os parlamentares favoráveis e contrários à taxação. Para melhor compreensão das estratégias utilizadas, fazem-se necessárias algumas explicações sobre os processos de votação de matérias no âmbito do Plenário do Senado.
De acordo com o Regimento Interno do Senado Federal (Risf), a votação das proposições pode ocorrer de forma secreta (nas situações especificadas em seu artigo 291, que fogem ao escopo deste artigo) ou ostensiva; para essas, pode-se adotar os processos simbólico ou nominal.
O método mais comum utilizado pela Casa é a votação ostensiva pelo processo simbólico, em que “os Senadores que aprovarem a matéria deverão permanecer sentados, levantando-se os que votarem pela rejeição” (artigo 293, I). Esse processo tem como principais características a rapidez e o anonimato dos parlamentares favoráveis, sendo frequentemente utilizado para matérias consideradas consensuais ou menos polêmicas.
Já a votação nominal é um processo marcado pela maior transparência, uma vez que cada senador tem seu voto (“sim”, “não” ou “abstenção”) identificado nominalmente no painel de votação presente no Plenário. Ela é adotada em três situações (artigo 294):
a) quando exigido quórum especial de votação (ou seja, aquelas deliberações que fujam à regra geral da maioria simples, estipulada no artigo 47 da Constituição Federal — a exemplo das Propostas de Emendas à Constituição, projetos de leis complementares, vetos etc.);
b) por deliberação do Plenário, a requerimento de qualquer senador; ou
c) quando houver pedido de verificação.
As duas últimas hipóteses do artigo 294 diferem em diversos aspectos. Enquanto a segunda pressupõe a apresentação e a aprovação de um requerimento anterior à votação da matéria (que, sem ele, ocorreria na modalidade simbólica), a terceira ocorre após a votação simbólica da proposição. Para esta hipótese não se faz necessária a aprovação prévia do requerimento, bastando que o pedido de verificação seja apoiado por três senadores, dispensada a anuência da maioria (Risf, artigo 293, III). Uma regra essencial aplicável somente ao procedimento de verificação de votação é aquela constante no inciso V do artigo 293 do Risf, segundo o qual “procedida a verificação de votação e constatada a existência de número, não será permitida nova verificação antes do decurso de uma hora”. Essa regra serve para evitar sucessivas interrupções das sessões, decorrentes de reiterados pedidos de verificação, o que poderia inviabilizar a sequência dos trabalhos legislativos.
Etapas regimentais
Diferenciados os processos de votação, é preciso explicar brevemente as etapas regimentais de apreciação de uma matéria no Plenário daquela Casa. De acordo com o artigo 300, inciso I, do Risf, a deliberação sobre as matérias deve obedecer à seguinte sequência: em primeiro lugar, é votado o texto base do projeto. Em regra, esse texto é votado em globo, salvo se aprovado requerimento para sua deliberação por partes ou artigo por artigo. Em seguida, vota-se o conjunto de emendas com pareceres favoráveis e, em outra votação, as com pareceres contrários.
Para “retirar” dispositivos do texto base ou emendas dessas votações em conjunto, o Regimento prevê a existência de requerimentos de destaque (artigos 312 e seguintes). O destaque é um expediente do processo legislativo usado para que se proceda a uma “votação em separado” da matéria a que ele se refere, o que geralmente concerne a um tema não-consensual ao texto acordado. As matérias destacadas são votadas após a deliberação desses conjuntos (uma análise mais aprofundada das regras de apreciação dos destaque pode ser apreciada neste texto). Essa ordem garante que a deliberação siga uma sequência lógica, priorizando o texto principal e permitindo que alterações propostas (emendas e destaques) sejam votadas em seguida, de forma autônoma.
Diante dessa complexidade de etapas de votações sucessivas, e no intuito de proporcionar maior compreensão, eficiência e celeridade às deliberações, o Senado tem adotado o costume legislativo de proceder às votações “nos termos do parecer”. Esse procedimento implica que o projeto seja apreciado conforme as recomendações do parecer, sem necessidade de votar cada emenda individualmente em Plenário. Ele é especialmente útil para projetos complexos ou com muitas emendas, garantindo que os senadores possam focar nas discussões principais, confiando na análise fornecida pelo parecer. Em outras palavras, em uma única votação se deliberam o texto original do projeto e as emendas, no sentido de seus pareceres (aquelas com parecer favorável são aprovadas e as com parecer contrário, rejeitadas).
Jogadas de xadrez
Retornando ao PL nº 914/2024, como já mencionado, o parecer do senador Rodrigo Cunha acatou somente algumas das emendas apresentadas, entre as quais uma que excluía os trechos referentes à “taxação das blusinhas”. Aqueles favoráveis à manutenção da taxação apresentaram, então, um requerimento de destaque para votação em separado dos dispositivos contidos no projeto referentes à nova taxa, cuja aprovação (e consequente manutenção do texto) prejudicaria, por conseguinte, a Emenda supressiva nº 3, acatada pelo relator.
Procedeu-se, primeiramente, à votação do projeto nos termos do parecer, o qual foi aprovado em Plenário de forma consensual e unânime, pelo procedimento padrão de votação simbólica. Foi precisamente aqui que ocorreram as jogadas mais brilhantes desse jogo de xadrez regimental.
Preocupados com os possíveis custos político-eleitorais que o expresso posicionamento favorável à taxação acarretaria, os senadores que visavam a sua manutenção buscaram estratégias regimentais para que a votação do destaque ocorresse pelo procedimento simbólico. Assim, realizaram um pedido de verificação da votação nesse primeiro passo, ou seja, na deliberação do projeto em si e das emendas com parecer favorável, objetos de amplo consenso (verificado pelo resultado da votação, com a unanimidade favorável dos 67 votos). Com isso, conseguiram impedir que um novo pedido de verificação ocorresse durante a hora seguinte, prazo no qual esperavam ser analisado o destaque da “taxa das blusinhas”.
Vale salientar que alguns incidentes regimentais e estratagemas para protelar a votação (apresentação de questões de ordem, discursos longos, apartes, novos requerimentos de destaque e de votação nominal, entre outros), poderiam ter sido utilizados a fim de que o prazo de uma hora tivesse transcurso antes da apreciação do destaque. A apresentação e a aprovação de um requerimento para que a votação do texto, nos termos do parecer, se desse inicialmente na modalidade nominal também afastaria a possibilidade de pedido de verificação de votação nesse momento e, desse modo, impediria a incidência da regra da uma hora.
Vitória da taxação
Após essas jogadas, o destaque das blusinhas, então votado pela modalidade simbólica, foi aprovado pelo Plenário, e o texto respectivo ficou mantido na matéria. A partida foi encerrada com vitória dos senadores favoráveis à taxação. Retornaram à Câmara dos Deputados somente as emendas modificativas que diziam respeito ao Programa Mover, não sendo mais possível àquela Casa se debruçar novamente sobre o tema da “taxação das blusinhas”.
A deliberação do PL 914/2024 no Senado demonstrou não apenas a complexidade e as nuances do processo legislativo brasileiro, mas também a habilidade dos parlamentares em utilizar as regras regimentais a seu favor. As estratégias empregadas, especialmente em relação à “taxa das blusinhas”, denotam a importância do domínio das normas regimentais e a necessidade de maior transparência e compreensão acerca da tramitação e da votação das proposições no Congresso Nacional.