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DANOS MORAIS REFLEXOS: É POSSÍVEL RESTRINGIR LEGITIMIDADE PARA BUSCA DE REPARAÇÃO CIVIL?

O julgamento do Recurso Especial 1.734.536-RS [1], em 6 de agosto de 2019, pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi paradigmático ao definir que a legitimação para a postulação da indenização por danos morais reflexos deveria alinhar-se, “mutatis mutandis, à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações (como, por exemplo, tornando irrelevante o regime de bens do casamento), porquanto o que se busca é a compensação exatamente de um interesse extrapatrimonial”.

ConJur

 

No julgamento, a 4ª Turma afastou a legitimidade das pessoas que não compõem o núcleo familiar da vítima direta do evento danoso, sob o fundamento de observância ao princípio da razoabilidade, mantendo o entendimento que já vinha esboçando em julgamentos anteriores, quando reconhecia a legitimidade de qualquer parente em linha reta ou colateral até o quarto grau [2].

Ao invocar o artigo 1.829 do Código Civil [3] como parâmetro, a 4ª Turma do STJ estabelece, então, a legitimidade dos seguintes familiares, nesta ordem: (a) descendentes em concorrência com o cônjuge ou companheiro(a); (b) ascendentes em concorrência com o cônjuge ou companheiro(a); (c) cônjuge ou companheiro(a); e (d) colaterais.

 

Dada a ausência de norma legal no ordenamento brasileiro que estabeleça rol de legitimados para postular o ressarcimento por danos extrapatrimoniais reflexos, a interpretação sistemática feita pelo STJ para recorrer à ordem de vocação hereditária é razoável e fundamentada. Pelo fato de a responsabilidade civil brasileira ser regida por cláusula geral, hipóteses excepcionais hão de ser, evidentemente, tratadas com excepcionalidade, sobretudo porque o elemento autorizador deste tipo de reparação é o valor de afeição.

Assim, definiu a 4ª Turma do STJ, no Recurso Especial 1076160-AM [4], que “conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém” significaria, em termos concretos, “impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador”. A Turma pontuou, ainda, que “conferir a via da ação indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais”.

À semelhança da 4ª Turma do STJ, a 3ª Turma também se utilizou da ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 do Código Civil para definir a legitimidade à postulação do ressarcimento, como se percebe no julgamento do Agravo Interno no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 982632-RJ [5]. A 1ª Turma, por sua vez, seguiu o entendimento ao posicionar-se pela “legitimidade de colateral até o quarto para reivindicar dano moral reflexo pela morte de parente” (Agravo Interno nos Embargos de Declaração no Agravo em Recurso Especial 1.253.018-SP [6]).

 

A teor do REsp 1.734.536-RS, a 4ª Turma não decidiu pela aplicação do regime sucessório na indenização dos danos morais por ricochete. O acórdão é claro ao utilizar a ordem contida no artigo 1.829 do Código Civil mutatis mutandis, tão somente com a finalidade de definir quem detém legitimidade para postular a reparação, afastando a legitimidade daqueles que não fazem parte da família direta da vítima.

É preciso considerar a segurança jurídica e a estabilidade conceitual que uma posição mais restritiva confere à responsabilidade civil por danos morais reflexos. Poder-se-ia argumentar com o risco de que pessoas abrangidas na ordem de vocação hereditária não guardassem com a vítima indireta vínculo de afeição tal a justificar a reparação. Ou mesmo o risco de que pessoas não contidas na ordem sofressem dor reflexa merecedora de tutela jurídica.

Considerações

Para estes riscos, há duas considerações: (a) no ordenamento jurídico brasileiro, dotado de cláusula geral de responsabilidade civil, a análise feita pelos tribunais será sempre casuística, ainda que orientada, a princípio, pela restrição sugerida — o que não elide a possibilidade de reparações em favor de outras pessoas se efetivamente comprovado o elo de afeição; e (b) como argumentado por João de Matos Antunes Varela e Fernando Andrade Pires de Lima, estes riscos “são aspectos em que as excelências da equidade tiveram de ser sacrificadas às incontestáveis vantagens do direito estrito” [7].

 

Não se mostra razoável, considerando-se o princípio da reparação integral e a cláusula geral de responsabilidade civil, reduzir os legitimados a um rol taxativo absoluto se o Código Civil não o fez, sob pena de se desvirtuar o sistema de responsabilidade civil escolhido e estruturado pelo legislador. Por outro lado, também não é razoável admitir-se a reparação irrestrita.

A pertinência subjetiva da ação consagra, então, um critério restritivo, de modo a permitir que se rechace pretensão indenizatória movida por pretenso legitimado que não se situa entre os que ostentam a condição familiar [8]. Esta restrição não é absoluta e pode ser afastada no exame casuístico, caso presentes elementos fortes aptos a justificar a concessão de reparação a pessoa diversa do núcleo familiar mais próximo à vítima direta.

A razoabilidade, neste aspecto particular, funda-se no estabelecimento de parâmetro seguro a ordenar a interpretação jurisprudencial, sob pena de deixar-se a casuística ditar as conclusões a que chegam os tribunais sem a segurança jurídica e a estabilidade que se espera do Poder Judiciário, com o risco de ter-se decisões divergentes proferidas por um mesmo órgão julgador.

A utilização da ordem de vocação hereditária como parâmetro de aferição de legitimidade encontra justificativa no mesmo motivo pelo qual dita as normas sucessórias: trata-se de relação preferencial baseada em relações de família e de sangue. Segundo Maria Helena Diniz, a lei, ao estabelecer esta ordem, inspirou-se na vontade presumida da pessoa falecida [9], apta a reger, também, a identificação da legitimação para a postulação de ressarcimento por danos morais reflexos.