MULHERES JURISTAS E OS 197 ANOS DOS CURSOS JURÍDICOS NO BRASIL
No próximo dia 11 de agosto, os cursos de Direito no Brasil chegarão aos 197 anos de existência. No longínquo ano de 1827, por decreto do imperador Pedro 1º, foram fundadas em solo nacional as duas primeiras instituições dessa natureza, as Faculdades de Direito do Recife (na época, de Olinda) e de São Paulo. Até então, para estudarem as letras jurídicas, habitantes do Brasil precisavam fazê-lo em Portugal. Depois de mais de cem anos de sua criação e já no século 20, essas tradicionais faculdades passaram a integrar respectivamente a Universidade Federal de Pernambuco (chamada inicialmente de Universidade do Recife) e a Universidade de São Paulo.
Quando se visita atualmente os prédios históricos das duas Faculdades de Direito mais antigas do Brasil, é impossível não se encantar com seus cenários, seja pela arquitetura predominantemente neoclássica da edificação recifense, seja o estilo eclético do prédio das Arcadas. Porém, o que fez e faz essas belas edificações verdadeiramente emocionarem as nossas almas é, quero crer, o seu componente humano. É de se lembrar, dos grandes nomes do Direito que fizeram delas grandiosas Casas desse tipo de saber científico, social e humano.
Na SanFran e na FDR, passou gente como Pimenta Bueno, Clóvis Beviláqua, Tobias Barreto, alguns até “duplicados” como Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco. Mas também passaram relevantes personalidades de destaque para além do saber jurídico, a exemplo de políticos de ideologias distintas como o governador Miguel Arraes, o vice-presidente Marco Maciel e o educador Paulo Freire, em Recife, e o ex-presidente da República Michel Temer, o governador Franco Montoro e o presidente da Assembleia Constituinte Ulysses Guimarães, em São Paulo. Mesmo outros que se notabilizaram pela arte, e não pelo Direito, também frequentaram essas Casas, como Alceu Valença e Ariano Suassuna na FDR, e Monteiro Lobato e Paulo Autran pela SanFran, para não falar de outro famoso “duplicado”, Castro Alves…
Ou seja, mais do que belas construções, tombadas pelo patrimônio histórico e artístico nacional, são o humano e o social que de fato fazem a grandeza dessas Casas. É o valor inestimável desses ícones do passado, mas também de cada docente que faz história hoje, de cada servidora e servidor, de cada discente, de todas e todos que fazem história hoje.
Quadras históricas
Temos, sim, de fato, um passado que nos orgulha. As Faculdades do Recife e do Largo de São Francisco presenciaram em seus recintos os ecos do abolicionismo, bem como a defesa da democracia e do Estado de direito em tempos de autoritarismo, como o Estado Novo e o regime ditatorial pós-1964. Formando grande parte da elite intelectual do país, grandes humanistas pelo saber e pela vivência do mundo, como destaca Pinto Ferreira, sendo essas faculdades “grandes salvaguardas intelectuais da liberdade” [1].
Mais recentemente, mantiveram a tradição democrática e libertária, sendo casas de resistência a novas investidas autoritárias e tentativas de destruição das instituições republicanas e da própria produção do conhecimento das quais o Brasil foi vítima em um passado tão recente e ainda tão presente. Ainda no início deste ano, quando completou um ano dos ataques sofridos pelos poderes da República em 8 de janeiro de 2023, docentes de ambas as Casas participaram do vídeo A Democracia Resiste [2], deixando claro que não há dois lados possíveis e legítimos quando um desses lados é a democracia, o Estado de direito e os direitos fundamentais, e o outro é o autoritarismo, o Estado de terror e a agressão àqueles direitos.
Desafios
Entretanto, é necessário perceber que aquilo que faz parte de nossas belas tradições não pode ser entrave para que essas pioneiras casas do saber jurídico sejam igualmente capazes de responderem aos enormes desafios que a atual conjuntura local, nacional e mundial nos coloca. Para além de tradição e história, também precisamos ser vanguarda. Preservando a memória histórica, mas sem retrotopias, na expressão da última obra de Zygmunt Bauman [3].
Muito do que outrora esteve ausente das discussões acadêmicas, hoje são debates fundamentais. Não é possível discutir as grandes questões do Direito Constitucional, do Direito Civil, do Direito Processual, do Direito Penal e de todos os demais ramos sem atentar para as leituras igualitaristas de gênero, de raça, de justiça social, de diversidade e de inclusão. E sem desmerecer todas as importantes questões de direito antidiscriminatório que perpassam essas leituras, destaco aqui a reflexão sobre igualdade de gênero em nossas instituições quase bicentenárias.
Misoginia e pioneirismo
Se as leitoras e leitores observarem os nomes ilustres que citei antes da história de nossas Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo, perceberão que não há nenhuma mulher. A SanFran e a FDR não deixaram nem deixam de reproduzir as características de seu tempo, tendo sido misóginas, de modo velado ou aberto, em boa parte de suas histórias.
Em dados concretos, a Escola Paulista foi pioneira em comparação com a recifense em relação à primeira professora efetiva e à primeira diretora eleita. A professora Esther de Figueiredo Ferraz foi a primeira a integrar seu quadro docente efetivo, em 1948, ainda assim 121 anos após a fundação da faculdade; também veio antes na eleição de uma mulher como sua diretora, em 1998, com a professora Ivette Senise Ferreira.
No caso da Escola do Recife, apenas em 1965, portanto, 138 anos depois de sua criação, tivemos a primeira mulher como docente efetiva, a professora Bernardette Pedrosa; já neste século 21, somente em 2007, tivemos a primeira diretora mulher eleita da história da Casa, professora Luciana Grassano, assim como a vice-diretora com ela eleita, professora Fabíola Albuquerque. Até hoje, as professoras Luciana Grassano e Ivette Senise são as únicas diretoras mulheres eleitas em quase dois séculos dessas duas grandes instituições.
Atualmente, as vice-diretoras de ambas as faculdades de Direito são mulheres, caso da professora Ana Elisa Bechara na SanFran, e desta que vos escreve, na FDR.
Apesar do pioneirismo da SanFran em ter sido a primeira a efetivar uma docente mulher em seus quadros e eleger uma diretora mulher, a FDR também foi a primeira em outros aspectos. Tivemos entre nós em Recife, por exemplo, a primeira discente a concluir o curso, Delmira Secundina da Costa, que o fez em 1888 [4], ao passo que na SanFran, isso só ocorreu 14 anos depois, em 1902, com Maria Augusta Saraiva [5]. Também foi a Escola do Recife a pioneira em ter pela primeira vez em sua história uma mulher transgênero eleita para integrar a sua direção [6]. O número atual de docentes igualmente favorece a FDR, já que embora em ambas tenhamos hegemonia masculina, esta é bem menor na última (42 professores e 25 professoras) que na primeira (129 professores e 26 professoras).
Discriminação sistêmica
O quadro fático traçado é bastante sintomático de que há muito a ser mudado para a reparação dessa injustiça histórica com as mulheres. Apesar de já termos certa igualdade de gênero em nosso alunado e corpo funcional, dentre docentes, bem como os altos cargos das profissões jurídicas continuam sendo masculinos com ampla hegemonia, a começar pelo próprio Supremo Tribunal Federal, hoje com dez ministros homens e apenas uma mulher, talvez um reflexo de nossa própria academia jurídica, sexista em grande medida.
Na sociedade, a dupla jornada feminina, o assédio moral e sexual, a violência sistêmica psicológica ou física, o frequente abandono paterno em relação às mulheres mães, dentre outros fatores, ainda são sérios e cotidianos desafios na vida de quase todas as mulheres desse país, e não é diferente quando se trata das mulheres juristas, mesmo em centros universitários considerados de vanguarda como nos casos das Faculdades de Direito da USP e da UFPE.
Apesar dos avanços conquistados, a desigualdade de gênero permanece tão arraigada que se tornou necessária a elaboração e publicação em 2021, pelo Conselho Nacional de Justiça, de um Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, para problematizar e buscar orientar magistrados e mesmo magistradas em todo o país para contextualizarem em suas decisões as questões de gênero e as desvantagens concretas que as mulheres sofrem dentro e fora das lides judiciais.
Afinal, diferentemente de outras formas de discriminação, por vezes localizadas em tempos e espaços específicos, a misoginia é o mais antigo e universal preconceito do mundo, como lembra Jack Holland [7].
E é claro que como mulher trans que sou, não posso deixar de também destacar a discriminação sistêmica ainda mais grave que sofre esse segmento de mulheres, muitas vezes maliciosamente colocado por ideologias misóginas como contrário aos direitos das mulheres cisgênero, quando na verdade a luta por igualdade de gênero jamais pode ser excludente. Evidentemente que mulheres são diferentes entre si, mas no direito e na institucionalidade, mulheres brancas, negras, indígenas, asiáticas, heteros, lésbicas, cis, trans, com deficiência, todas, sem exceção, precisam ser incluídas. É necessário pensar interseccionalmente a desigualdade de gênero, tal como preconiza Kimberle Crenshaw [8].
Inspiração
Nessa comemoração dos 197 anos da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, que tal pensarmos a igualdade de gênero no âmbito do Direito a partir do pioneirismo intelectual das Faculdades de Direito do Recife e de São Paulo?
Não subestimemos a potência histórica e social que possuem essas duas instituições quase bicentenárias e do quanto elas podem contribuir para promover um direito e um ensino jurídico com um olhar antidiscriminatório. Com olhares antimisóginos, antimachistas, antilgbtfóbicos, antirracistas, anticapacitistas. Olhares humanistas, inclusivos e a favor da diversidade em todas as suas acepções.
Rumo aos 200 anos! Rumo a um país com mais equidade de gênero! Viva o 11 de agosto!