REGISTRO DE ÓBITO NÃO SERVE PARA COMPROVAR TORTURA DURANTE A DITADURA, DIZ STJ
O assento de óbito, documento que registra a morte de uma pessoa e as informações correlatas, não serve para atestar que ela foi torturada durante a ditadura civil-militar.
Com essa conclusão, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso especial ajuizado pela Defensoria Pública de São Paulo em favor da família de Carlos Danielli.
Ele era dirigente do Partido Comunista do Brasil e foi perseguido e morto pela ditadura em 1972. A versão oficial é de que teria sido alvejado em um tiroteio com policiais.
As investigações da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e da Comissão Nacional da Verdade concluíram que ele foi torturado e morto no Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) da capital paulista.
O objetivo da ação era alterar o assento de óbito para incluir que sua morte se deu nas dependências do centro de tortura, bem como incluir a prática criminosa como responsável pela morte do militante.
Apenas a primeira parte foi deferida pela Justiça de São Paulo. A Defensoria Pública então recorreu ao STJ pedindo a alteração do registro para adequá-lo ao que realmente aconteceu.
Por 3 votos a 2, a 4ª Turma do STJ manteve essa conclusão. Venceu o voto divergente da ministra Isabel Gallotti, acompanhada por João Otávio de Noronha e Raul Araújo.
Competência para imputar crime
No voto vencedor, a ministra Gallotti destacou que não se discute a circunstância que causou a morte de Danielli, se houve tortura ou o tipo de ferimento que ele sofreu. Também não se questiona a apuração das comissões da verdade.
Trata-se de um pedido de correção de registro feito com base no artigo 110 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973). A norma fixa no artigo 80 as informações que devem estar no assento de óbito: dados pessoais, data, hora e local do falecimento e o que levou à morte. O documento também registra se a morte foi natural ou violenta.
Segundo a ministra Isabel Gallotti, o cartorário e o juiz que analisam o pedido da mudança no registro não têm competência para imputar responsabilidade pela morte de Carlos Danielli.
Assim, incluir a causa da morte como tortura praticada por agente do Estado implicaria em imputar responsabilidade a agentes públicos sem submetê-los ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
“O que deve constar é o nome de quem atestou o óbito e não o nome do criminoso que praticou o crime de tortura ou motivo fútil ou qualquer que seja. Isso não é matéria de registro público”, disse a ministra.
Justiça de transição
Ficou vencido o relator, ministro Marco Buzzi, acompanhado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira. Eles votaram por dar provimento para alterar o assento de óbito, incluindo ali a informação de que Danielli foi torturado por agentes do estado.
Para o ministro Buzzi, não se trata de atribuir competência aos tabeliões para certificar autoria e tipicidade de delito, mas de incluir um detalhamento das circunstâncias da morte de uma vítima de um regime ditatorial, tal qual reconhecido por órgãos estatais — no caso, as comissões.
“Ao esforço empreendido pelas comissões da verdade deve ser atribuída efetividade e reconhecimento, com o escopo de trazer à tona narrativas pertinentes ao período e concretizar medidas de reparação”, disse.
Assim, deve-se acolher pedidos de retificação de registro público para corrigir descompassos entre fatos declarados como versão oficial e aqueles que realmente ocorreram.
“Trata-se de colocar em prática a Justiça de transição: um conjunto de providências para o restabelecimento de um ambiente pacífico após período conflituoso, o que implica em revelar a verdade sobre crimes, conceber reparações, reformar instituições e promover conciliação.”
“O relatório diz que C.N.D. foi torturado até a morte no Doi-Codi, sendo falsa a versão oficial da morte em tiroteio. Devem ser acolhidos integralmente pedidos deduzidos na demanda”, disse o ministro Buzzi, que acabou vencido.