A TEORIA DA CONFIANÇA NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
No Brasil, a teoria da confiança, tutela da confiança ou a confiança como instituto jurídico, apresenta-se multifacetada [1]. Os diferentes grupos de casos em que a confiança é mencionada, muitas vezes retoricamente, denotam que a jurisprudência, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, utiliza a confiança como suporte argumentativo para decidir casos muito distintos. Exemplificando, ao inserir as expressões “confiança” e “legítima expectativa” na busca de jurisprudência do STJ, encontram-se 109 acórdãos e 8.391 decisões monocráticas.
Nos primeiros resultados, encontram-se processos versando: (1) responsabilidade civil pré-contratual em compra e venda de energia elétrica no ambiente de livre contratação [2]; (2) contrato de seguro [3]; (3) pensão por morte [4]; (4) plano de saúde coletivo decorrente de relação de trabalho, mencionando o instituto parcelar da boa-fé da suppressio [5]; (5) ação civil pública por descumprimento de normas e prazos da Anvisa para suspender medicamento [6]; (6) confiança em ato administrativo do poder público [7]; (7) outro caso de suppressio, mas versando cláusula contratual [8], dentre tantos outros.
Tais dados denotam influência linguística, eventualmente ornamental, da confiança nas decisões judiciais, mas, noutro lado, podem revelar que a teoria da confiança não alçou autonomia ou densificação dogmática suficiente para que sua aplicação ocorra de modo uniforme. No mesmo sentido, o próprio princípio da boa-fé objetiva é utilizado recorrentemente mesmo em casos que outros institutos jurídicos solveriam adequadamente os problemas postos, mesmo quando não deveria ser usado como varinha de condão para resolver todos os males [9].
E mesmo em doutrina, não há uniformidade se a teoria da confiança é um instituto autônomo ou é outra figura parcelar da boa-fé objetiva. Antonio Pinto Monteiro defende que o princípio da confiança é princípio ético-jurídico [10], expressão da boa-fé, o qual acolhe soluções justas pela proteção de quem confia na conduta de outrem [11]. Mesmo assim, o eminente autor português argumenta que várias soluções legislativas que apelam à boa-fé objetiva se inspiram na necessidade de tutelar a confiança.
Por sua vez, Manuel Carneiro da Frada, na mais extensa obra em língua portuguesa sobre o tema, advoga uma teoria “pura” da confiança, como uma terceira via da responsabilidade civil [12]. Afirma o autor que o “cerne da regra de conduta de boa-fé é ético-jurídico”, estando em causa um “padrão de comportamento individual, a necessidade de uma conduta proba, honesta ou leal” [13]. A confiança, diferentemente, será uma realidade autônoma, destrinçada da boa-fé, na medida em que a confiança constitua o “vero fundamento da imputação de determinados danos”[14]. Dito de outro modo, a confiança para ser dotada de autonomia teria que ser o próprio fundamento da responsabilidade e não a intenção normativa de uma disposição, que poderia vir a acarretar a responsabilização, como no caso da violação de uma legítima expectativa no curso de um contrato.
Em posição singular, António Menezes Cordeiro, em extenso trabalho sobre a boa-fé, sustenta a posição que a confiança exprime na situação em que uma pessoa adere em termos de atividade ou crença, a certas representações que tenha por efetivas [15] e, assim, “constituiu, por excelência, uma ponte entre as boas fés objectiva e subjectiva, devendo assentar em ambas” [16].
Em terras tupiniquins, o tema é tratado em poucos trabalhos monográficos dedicados ao princípio da boa-fé objetiva [17] e artigos científicos de matizes diversas [18]. Nota-se, entretanto, recente tese de doutorado versando o tema [19]. Todos esses apontamentos demonstram que o tema da confiança não é simples e demanda maiores estudos na doutrina nacional.
Atualidade do tema
A busca pela compreensão da confiança não é fácil, sendo motivo de dissenso e de intensos debates. Contudo, é inegável a sua importância e a sua atualidade numa sociedade cada vez mais complexa. A confiança é elemento decisivo nas sociedades contemporâneas e em todas as formas de interações humanas, tornando-se um dos principais componentes do capital social, necessária à integração social, eficiência econômica e estabilidade democrática [20]. Nessa linha, a confiança é um componente básico do capital social [21], a qual sustenta o dinamismo econômico e promove a cooperação. Ela funciona como um verdadeiro instrumento de redução da complexidade social.
No campo do Direito, no entanto, é preciso cautela em sua aplicação. A afirmação da proteção da confiança traz sérios questionamentos, uma vez que ela protege a aparência, em detrimento da confiança na própria posição jurídica. Explica-se: o titular de uma posição jurídica pode ver o seu direito postergado a favor de quem tenha uma simples aparência, o que poderia levar ao descrédito da legitimidade do próprio direito positivo – o que, de fato, não ocorre [22]. Assim, é preciso dar contornos dogmáticos à tutela da confiança, buscando critérios para caracterizar o que o confiante poderia legitimamente ter acreditado nas expectativas que lhe haviam sido acenadas a partir das representações colocadas em sua realidade social [23], afastando-se de uma análise subjetiva, quase leviana. Aqui busca-se a fides qualificada, que efetivamente cria uma situação de confiança juridicamente tutelada se distinguindo de uma mera, ou qualquer, expectativa, pois naquela existem parâmetros objetivos que legitimam a confiança despertada.
A tutela da confiança, portanto, poderá promover o próprio interesse do confiante ou, ao menos, uma indenização pelos prejuízos decorrentes na crença despertada. Trata-se da importante distinção entre a proteção positiva e a proteção negativa da confiança. Nesta resta caracterizado o dever jurídico de ressarcir um prejuízo decorrente da confiança alheia, o que se pode denominar de ‘responsabilidade pela confiança’. A proteção positiva, distintivamente, reside na preocupação da ordem jurídica em assegurar ao sujeito a sua expectativa, de modo a fazer valer a situação de confiança criada [24].
Não há dúvidas, à vista do acima exposto, que a confiança é aspecto fundamental das relações sociais no Direito brasileiro. Do ponto de vista sociológico e do Direito, a confiança se apresenta como alicerce do dinamismo social e das relações econômicas, sendo vetor de segurança do tráfego jurídico de massas. A problemática estará em buscar contornos dogmáticos mais precisos para que seu uso não ocorra retoricamente de modo a afastar respostas próprias do direito positivo e, ao mesmo tempo, sem desprezar esse importante elemento dos usos e do tráfico.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).