AUMENTO DE PENAS PARA CRIMES CONTRA A MULHER NÃO É SOLUÇÃO PARA A VIOLÊNCIA
O endurecimento de normas penais e processuais penais não necessariamente ajuda a combater a violência contra a mulher, embora ajude a conscientizar a população sobre o problema. Além disso, há o risco de se estimular o aumento de penas de outros crimes, pressionando ainda mais o já superlotado sistema carcerário brasileiro, de acordo com estudiosos do assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou, no último dia 9, a Lei 14.994/2024, que endurece o tratamento penal conferido a autores de violência contra a mulher.
A principal novidade da norma é tornar o feminicídio um crime autônomo, e não mais um qualificador de homicídio, com aumento de sua pena abstrata de 12 a 30 anos de reclusão para 20 a 40 anos — a maior punição prevista na legislação penal brasileira.
O texto também traz novas previsões de agravantes para o feminicídio. São elas: o emprego de veneno, tortura ou outro meio cruel; emboscada ou outro recurso que torne impossível a defesa da vítima; e emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido.
A nova lei ainda eleva a pena do condenado que, no cumprimento de penalidade, descumprir medida protetiva. A punição aumenta de detenção de três meses a dois anos para reclusão de dois a cinco anos e multa.
Além disso, a norma cria a previsão de transferência do presidiário ou preso provisório por crime de violência doméstica ou familiar em caso de ameaça. Dessa forma, se ele ameaçar ou praticar novas violências contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena ou prisão provisória, ele será transferido para presídio distante do local de residência da vítima.
Outras inovações da lei são o aumento em dobro das penas dos crimes contra a honra da mulher em razão do gênero; o aumento em dobro da pena do crime de ameaça contra a mulher em razão do gênero, e a ação penal se torna pública incondicionada; o aumento das penas abstratas dos crimes de lesão corporal contra cônjuge, companheiro(a) ou familiares e contra mulher em razão do gênero, passando a ser de dois a cinco anos de reclusão; o aumento pelo triplo da pena da contravenção de vias de fato se contra mulher em razão do gênero; e a decretação da perda de poder familiar e de cargo público se torna automática em condenações definitivas por crimes contra mulher em razão do gênero.
A Lei 14.994/2024 promove alterações no Código Penal, na Lei das Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), na Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984), na Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990), na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) e no Código de Processo Penal.
Mudanças simbólicas
O endurecimento de normas penais e processuais penais é a resposta padrão oferecida pelo Congresso para reduzir a criminalidade, mas não necessariamente ajuda a combater a violência contra a mulher.
As alterações promovidas pela Lei 14.994/2024 apostam no Estado penal e na lógica punitiva como meios de proteger mulheres. Como isso não funciona na prática, trata-se de “Direito Penal simbólico”, segundo a vereadora carioca Luciana Boiteux (PSOL), professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Apesar das boas intenções e de uma lógica com a qual eu concordo, que é a de que crimes de violência contra a mulher são mais graves, pois envolvem opressão e machismo — diferentemente das violências envolvendo homens —, o problema é que se aposta no sistema penal como algo que possa levar a resultados positivos. O que poderia efetivamente reduzir crimes contra a mulher seria garantir maiores condições de acesso a políticas públicas de prevenção à violência.”
Marcela Miguens, professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), opina que o endurecimento dos castigos para delitos contra a mulher faz parte de “um movimento cada vez mais frequente de apostar no recrudescimento da lei penal no combate à violência”.
Ainda que seja difícil estabelecer uma relação entre o recrudescimento das normas penais e processuais penais e a redução da violência contra a mulher, ela ressalta que o Direito Penal é importante na prevenção a tais crimes.
“Considerando que vivemos em uma sociedade em que o Direito Penal existe e é utilizado na pretensa proteção de bens jurídicos, medidas de natureza penal podem ser um importante instrumento, ainda que, por si sós, sejam incapazes de lidar com esse fenômeno da violência de gênero em sua totalidade, pois ele tem raízes muito profundas nas nossas estruturas sociais.”
40 anos
A Lei 13.964/2019 estendeu de 30 para 40 anos o período máximo de cumprimento de pena permitido no país. E agora a Lei 14.994/2024 criou a primeira previsão legal abstrata de uma pena máxima de 40 anos no Brasil. Com a incidência de causas de aumento de pena, a condenação por feminicídio poderá passar dos 60 anos.
A alteração “flerta com uma possibilidade de perpetuidade das prisões, considerando as condições de vida no cárcere”, afirma Marcela Miguens — a Constituição Federal proíbe penas de caráter perpétuo (artigo 5º, XLVII, “b”). Ela acredita que a mudança pode ser uma abertura para o aumento da pena máxima de outros crimes, seguindo a tendência de buscar no Direito Penal a solução para a maior parte das mazelas sociais.
“É uma pena meramente simbólica e desproporcional”, opina Luciana Boiteux. “Afinal, as pessoas não se intimidam pela pena máxima prevista para um delito.” A professora da UFRJ também receia que a medida possa causar um efeito dominó em outros crimes e pressionar ainda mais o sistema carcerário brasileiro, que já tem a terceira maior população do mundo, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China.
“O que há de inédito, há de preocupante na Lei 14.994/24. A chegada ao extremo da fronteira punitiva com o feminicídio deve desassossegar não só a comunidade jurídica como todos(as) que constroem e disputam o curso das políticas públicas criminais no país”, alertam o juiz Alexandre Morais da Rosa e a coordenadora-adjunta do Departamento de Política Legislativa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), Iara Maria Machado Lopes, na coluna Criminal Player, da ConJur.
Mudanças e números
As duas alterações normativas mais emblemáticas do combate à violência contra a mulher neste século foram a Lei Maria da Penha e a Lei 13.104/2015. A primeira conferiu maior proteção a mulheres que sofrem violência em suas relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto. E a segunda criou o feminicídio no país.
Contudo, essas inovações legislativas não foram capazes de coibir a violência contra a mulher. Dados do Conselho Nacional de Justiça sobre a atuação do Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha revelam que 640.867 processos de violência doméstica e familiar e/ou feminicídio ingressaram nos tribunais brasileiros em 2022.
A última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que todos os registros de crimes com vítimas mulheres cresceram em 2023 na comparação com 2022: homicídios e feminicídios (tentados e consumados), agressões em contexto de violência doméstica, ameaças, perseguições (stalkings), violências psicológicas e estupros.
Ao longo do ano passado, 258.941 mulheres foram agredidas, o que indica alta de 9,8% em relação a 2022. Já o número de mulheres que sofreram ameaça subiu 16,5% (para 778.921 casos), e os registros de violência psicológica aumentaram 33,8%, totalizando 38.507. Os dados do anuário são extraídos de boletins de ocorrência policiais compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
Outro levantamento do fórum aponta que ao menos 10.655 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil de 2015 a 2023. De acordo com o relatório, o número de feminicídios cresceu 1,4% em 2023, na comparação com o ano anterior, e atingiu a marca de 1.463 vítimas, indicando que, na média, mais de quatro mulheres foram mortas por dia. O número é o maior da série histórica iniciada pelo FBSP em 2015, quando foi criado o feminicídio.
Marcela Miguens ressalta que o constante aumento no número de crimes contra a mulher desde a edição da Lei Maria da Penha pode, em parte, ser atribuído a um impacto positivo da norma: fazer com que muitos casos que antes estavam encerrados nos espaços privados viessem à tona, sendo investigados e resultando em processos.
A professora da UFRRJ considera a Lei Maria da Penha um marco no combate à violência contra a mulher. Até porque, anteriormente, muitos desses casos eram tratados como infrações de menor potencial ofensivo, reguladas pela Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/1995). A docente ressalta que a Lei Maria da Penha tem natureza variada, de onde se sobressai o seu caráter penal, especialmente — mas não exclusivamente.
“Deve-se ter em vista que o objetivo principal da lei é o de prevenir, punir e erradicar as formas de violência contra a mulher existentes. Pode não parecer haver tanta distinção, mas o foco principal é a proteção da mulher, estabelecendo uma série de medidas para que se possa garantir a preservação dos direitos humanos das mulheres, sendo que a punição do agressor é uma delas.”
Nessa mesma linha, Luciana Boiteux avalia que as inovações mais eficazes da Lei Maria da Penha foram as medidas protetivas e as políticas públicas para mulheres vítimas de violência. Nos seus 18 anos de existência, a norma teve o efeito positivo de mudar a “cultura machista” que permeia o Brasil, destaca a vereadora.
Ela diz que também foi positiva a criação do feminicídio, até para ser possível mapear os homicídios cometidos contra mulheres em razão do gênero, que é algo diferente dos assassinatos em geral.
“Não penso que a criação do crime de feminicídio ou a edição da Lei Maria da Penha vão reduzir a violência contra as mulheres. Nem posso falar em eficácia. Mas certamente as normas promoveram uma maior conscientização da violência contra a mulher”, opina a professora da UFRJ.
De acordo com Marcela, o reconhecimento do feminicídio pelo Direito Penal “representou o início do afastamento de interpretações jurídicas anacrônicas que colocavam a destruição das vidas das mulheres como crimes passionais”. “Foi também um passo em direção ao rechaço da desqualificação moral das vítimas durante a persecução penal e à compreensão de que as vidas das mulheres não têm menos valor e que devem ser protegidas”, completa ela.
Proteção da mulher x garantismo
O movimento de endurecimento de normas penais e processuais penas — tanto relacionadas à violência contra a mulher quanto aos demais crimes — não pode se sobrepor ao garantismo penal, analisam as professoras.
O jurista italiano Luigi Ferrajoli é o principal responsável pelo desenvolvimento da teoria do garantismo penal. A preocupação de todo o arcabouço garantista é com a contenção da violência (seja a dos cidadãos ou a do Estado). Se o crime é uma violência, a pena também é, segundo o professor. Assim, Ferrajoli propõe uma dupla finalidade ao Direito Penal: prevenir a violência advinda dos crimes e, ao mesmo tempo, evitar a violência advinda das reações (penas) arbitrárias, como explica em artigo publicado na ConJur Ana Cláudia Bastos de Pinho, professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará.
Como o sistema repressivo é machista, as maiores violações de princípios e garantias não ocorrem com homens acusados de praticar violência contra a mulher, mas contra os suspeitos de tráfico de drogas, afirma Luciana Boiteux. Ela diz ser preciso reforçar a luta por um sistema penal garantista.
Já Marcela Miguens aponta que é necessário dar concretude ao garantismo, sem, porém, deixar de proteger as mulheres com o Direito Penal.
“Correndo grande risco de simplificação de um conceito sofisticado e complexo, o garantismo penal é um resgate de postulados liberais e iluministas que se contrapõe às estruturas inquisitoriais do sistema punitivo. O garantismo é uma teoria legitimadora do Direito Penal, que reconhece a sua atuação baseada na proteção de bens jurídicos, mas que impõe limites ao poder de punir do Estado. A vida das mulheres certamente é um bem jurídico que justifica a intervenção penal, sobretudo quando estamos tratando de situações em que destruição da vida se dá pelo fato de a vítima ser mulher.”