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PEDIDO INFORMAL DE DADOS DO COAF VIOLA DIREITOS E JURISPRUDÊNCIA DE STF E STJ

As comunicações entre o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e integrantes do Ministério Público ou da polícia só podem ser feitas por meios formais, conforme determina a jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.

 
coaf

Em 2023, Coaf produziu, em média, 38 relatórios por dia a pedido de polícias e MP

Mesmo assim, a troca informal de dados entre órgãos continua frequente, o que viola direitos dos cidadãos e diminui a qualidade das investigações, segundo especialistas no assunto ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.

Em depoimento prestado a senadores na Comissão Parlamentar de Inquérito das Bets, em 26 de novembro, o delegado de Polícia Civil do Distrito Federal Erik Salum explicou que, em grandes investigações, autoridades policiais falam diretamente com servidores do Coaf.

 

“O Coaf gera o relatório de inteligência financeira (RIF) automaticamente se tiver até 800 comunicações. Se tiver acima de 800 comunicações, o sistema automático trava, de tanta comunicação que é. Aí o delegado precisa ligar (para o Coaf) e falar: ‘Olha, me dá uma ajuda aqui, me direciona, para eu tentar selecionar o que você quer’.”

Comunicação ilegal

Os especialistas ouvidos pela ConJur dizem que esse tipo de comunicação direta entre delegado e analista do Coaf é ilegal. O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que o Plenário do STF já deixou claro que qualquer comunicação entre autoridades e Coaf deve ser formal e pelos meios institucionais existentes (Recurso Extraordinário 1.055.941). “Os ministros foram taxativos em rechaçar pedidos informais de dados”, disse o advogado.

 

Na ocasião, o STF aprovou a seguinte tese (Tema 990 de repercussão geral):

1) É constitucional o compartilhamento dos relatórios de inteligência financeira da UIF (Unidade de Inteligência Financeira, nome antigo do Coaf) e da íntegra do procedimento fiscalizatório da Receita Federal do Brasil, que define o lançamento do tributo, com os órgãos de persecução penal para fins criminais, sem a obrigatoriedade de prévia autorização judicial, devendo ser resguardado o sigilo das informações em procedimentos formalmente instaurados e sujeitos a posterior controle jurisdicional;

2) O compartilhamento pela UIF e pela RFB, referente ao item anterior, deve ser feito unicamente por meio de comunicações formais, com garantia de sigilo, certificação do destinatário e estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de eventuais desvios.

De acordo com Bottini, é preciso aprovar com urgência um marco legal para o tratamento de dados no campo da segurança pública. “As lacunas que hoje existem geram insegurança para os cidadãos e para as autoridades, que têm dificuldade para definir suas estratégias de atuação diante de regras imprecisas e interpretadas de maneira contraditória pelo Judiciário.”

Os advogados André Callegari e Marília Fontenele, professores de Direito Penal do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), também apontam que não é legítimo o compartilhamento de RIF pelo Coaf com delegados antes da instauração do inquérito, mesmo que já exista procedimento preliminar para apuração de suposto crime. Isso de acordo com jurisprudência recente da 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (Recursos em Habeas Corpus 188.838 e 187.335 e Reclamação 70.191).

 

“Em seu novo posicionamento, o STJ entende que, embora o procedimento prévio de apuração tenha alguma formalidade, ele não preenche — e esse é o ponto nevrálgico — o requisito de investigação formal utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 990 para autorizar o compartilhamento de informações”, destacam Callegari e Marília.

Os criminalistas ressaltam que a regulamentação do uso da notícia de fato, feita pelo Conselho Nacional do Ministério Público por meio da Resolução 147/2017, reforça essa conclusão. A norma estabelece que, ao receber a notícia de fato, o membro do MP pode colher informações preliminares imprescindíveis para deliberar sobre a instauração do procedimento próprio, sendo vedada a expedição de requisições.

“Ora, se o Ministério Público não pode, em notícia de fato, fazer requisições, a autoridade policial, por óbvio, que serve apenas para municiar o titular da ação penal, não poderá requisitar informações ao Coaf”, avaliam os advogados.

Confusão jurisprudencial

Na visão do advogado Alberto Zacharias Toron, professor de Direito Processual Penal da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), as recentes alterações na jurisprudência do Supremo tornaram o cenário da requisição direta de RIF ao Coaf por delegados “uma espécie de festa do caqui”.

“É possível fazer uma verdadeira pescaria — isso que os americanos chamam de fishing expedition — simplesmente prospectando dados. O delegado tem uma suspeita, pede um RIF e a partir daí inicia a investigação. Isso viola direitos básicos do cidadão quanto à sua intimidade. E só poderia ser feito pela via judicial.”

O STF decidiu, em 2019, que o Coaf pode enviar essas informações de ofício. Hoje, a c

orte está dividida quanto à possibilidade de polícias e Ministério Público fazerem uma requisição dessas informações. A 1ª Turma entende que esse compartilhamento é válido, sem qualquer necessidade de passar por controle prévio do Judiciário. Já a 2ª Turma diz que o envio de informações depende de autorização do juiz competente.

 

“Ao se estabelecer a possibilidade de o delegado requisitar ou pedir RIF diretamente, adentra-se um campo da informalidade onde tudo é possível, inclusive pesquisar inimigos e autoridades politicamente expostas, como já se tentou fazer no passado. É por isso que eu penso que o Supremo deve rever a sua jurisprudência, na linha do que tem decidido a 2ª Turma”, analisa Toron.

Efeitos da divergência

A divergência entre as turmas do STF reverbera com força no Superior Tribunal de Justiça. A princípio, a corte interpretou o compartilhamento de “RIFs por encomenda”, sem prévia autorização judicial, como ilícito, orientação que já varia por causa do Supremo.

O impacto disso não é baixo. Em dez anos, o Coaf aumentou em 1.339,4% o número de RIFs produzidos por iniciativa das Polícias Civil e Federal e do Ministério Público. Em 2023, o órgão elaborou e entregou uma média de 38 relatórios por dia.

Presidente do Coaf, Ricardo Liáo disse à ConJur que esse embate exige que o Supremo estabeleça quais são os requisitos mínimos, máximos ou básicos a serem observados nas demandas oriundas das autoridades de investigação.

O risco, conforme apontado por especialistas, é que Coaf e Receita se tornem repositórios de informações e permitam a prática de pesca probatória (fishing expedition).