ATUAÇÃO DO AMICUS CURIAE SE CONSOLIDA EM 25 ANOS, MAS FALTAM REGRAS CLARAS
O Poder Judiciário brasileiro vem consolidando, nas últimas décadas, a prática de aceitar a participação de terceiros em processos de grande repercussão. A figura do amicus curiae, prevista em lei há mais de 25 anos, é uma presença crescente nos tribunais, mas sua aplicação ainda sofre com a falta de regramento uniforme: para magistrados e advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico, ainda não há critérios claros para a admissão e a atuação dos amigos da corte.

Audiência na ADPF 743, sobre crimes ambientais: ação tem nove amici curiae
A legislação sobre o tema é vaga. A Lei 9.868/99, que regulamenta as ações diretas de inconstitucionalidade (ADI) e as ações declaratórias de constitucionalidade (ADC), autoriza “a manifestação de outros órgãos ou entidades” no processo, mas não entra em detalhes.
Já o Código de Processo Civil de 2015, que citou expressamente o amicus curiae pela primeira vez, estabeleceu apenas que o amigo da corte não pode apresentar recursos, exceto se forem embargos de declaração ou contra decisões em incidentes de resolução de demandas repetitivas — análise de questões jurídicas presentes em múltiplas ações.
De resto, o CPC autorizou o juiz a “definir os poderes” do amicus curiae em cada caso. Ou seja, o magistrado tem poder discricionário para decidir quem pode ingressar na ação, e de que maneira.
“Realmente não existe um padrão determinado para a atuação dos amici curiae“, avalia o advogado Osmar Paixão Côrtes, professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa. “Por regra, a admissão ou não dos colaboradores é uma decisão individual do magistrado. Logicamente ele se espelha em outras decisões dele ou de colegas, mas a gente não tem critérios objetivos e uniformes para as cortes em geral.”
O Superior Tribunal de Justiça publicou, no início do mês, um compilado de jurisprudência com 13 teses sobre o ingresso e a participação dos amici curiae. O documento traz entendimentos gerais sobre quem pode ser admitido nos processos, em que tipo de ação eles podem atuar e quais intervenções estão autorizados ou não a fazer. A lista, contudo, cobre apenas parte das lacunas deixadas pela lei, o que abre margem para diferentes aplicações nos tribunais.
“O Supremo Tribunal Federal tem uma dinâmica, nós (STJ) temos outra, na Corte Especial, e cada seção do STJ também tem uma temática específica para tratar do amigo da corte”, resumiu o ministro Luis Felipe Salomão, vice-presidente do STJ, em evento na semana passada.
“O amicus curiae é regulado por um único artigo do CPC. É uma novidade que foi muito bem recebida pelo Judiciário, mas o uso contínuo dela foi mostrando lacunas na aplicação, algo que é natural em qualquer legislação. Com o tempo, foram se acumulando dúvidas sobre o exercício prático desse instituto”, afirma Cássio Scarpinella Bueno, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e autor de um livro sobre o amicus curiae no processo civil brasileiro.
Atuação crescente
A participação do amicus curiae é mais comum em tribunais superiores, que mais frequentemente julgam casos de ampla repercussão. A ferramenta, porém, também é usada em cortes de segundo grau a níveis federal e estadual.

Ações com participação de amici curiae no Supremo, de 1999 a 2024
O portal Corte Aberta, do Supremo Tribunal Federal, aponta que a corte já admitiu mais de oito mil amici curiae desde 1999, quando o uso do instrumento teve início. Segundo os dados da página, analisados pela ConJur, um total de 1.814 processos no STF teve pelo menos um amigo da corte, e a participação vem crescendo ao longo do tempo.
De 1999 até o final de 2014, quando o amicus curiae ainda não aparecia no CPC, o STF abriu 621 ações que tiveram intervenção de terceiros, uma média inferior a 40 processos por ano. Já nos dez anos seguintes, de 2015 a 2024, foram abertos 1.193 processos com amici curiae, uma média anual de 119 ações.
Em geral, poucos amici curiae atuam em casa caso: dos 1.814 processos com intervenção de terceiros no Supremo, mais de um terço (647) teve apenas um participante. Somando-se as ações que tiveram dois ou três participantes, o número (1.223) supera dois terços do total.
Alguns casos, porém, reuniram dezenas de amici curiae no STF. Parte dessas ações trata de temas com duas posições claramente antagônicas em disputa, como a criminalização do aborto (ADPF 442); a contribuição sindical obrigatória (ADI 5794); e a letalidade das ações policiais no Rio de Janeiro (ADPF 635). Nesses processos, o apelo político da discussão levou à mobilização de várias entidades de ambos os lados para tentar influir no julgamento.
Outras ações com múltiplos atores discutiram temas econômicos ou jurídicos de grande repercussão, o que atraiu a participação de várias associações de classe. É o caso da ADI 7.064 (que tratou de um teto imposto pelo Congresso ao pagamento de precatórios); da ADI 7.066 (sobre a cobrança do Difal — a diferença de alíquota do ICMS); e da ADI 6.298 (em que se contestava a criação do juiz das garantias).
Decisões contraditórias
Conforme os dados do Supremo, a ação campeã de admissões é a ADPF 442, que debate a possível descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O processo, que teve início em 2017 e não foi julgado até o momento, conta com 56 amici curiae. Os participantes, que são entes públicos ou privados, estão divididos entre favoráveis e contrários ao pedido do PSOL, autor da ADPF.

Processos com mais amici curiae no STF: ação sobre aborto é campeã de admissões
Essa ação é um exemplo da falta de regras claras sobre o assunto. A ministra Rosa Weber, que foi relatora do caso até se aposentar, em setembro de 2023, rejeitou os pedidos de 53 entidades que também queriam ingressar como amici curiae, mas parte dessas recusas foi anulada posteriormente pelo ministro Flávio Dino, que assumiu a relatoria da ação.
Rosa barrou a entrada de algumas organizações com a justificativa de que elas só pediram ingresso após o processo ter sido pautado para julgamento. Segundo afirmou a ministra, a jurisprudência do STF estabelece que só devem ser aceitos os pedidos feitos antes de a ação ser incluída em pauta. Algumas entidades apontaram, no entanto, que o Supremo já abriu várias exceções a essa regra e aceitou a adesão de amici curiae após o processo ser pautado.
Paridade de armas
Na decisão em que analisou a maioria dos pedidos, em setembro de 2022, Rosa afirmou que buscou abraçar “pontos de vista diferenciados” — no caso, contra ou a favor da criminalização do aborto — e que escolheu os amici curiae conforme “a utilidade e a conveniência” de atuarem no processo, o caráter técnico de seus posicionamentos e a amplitude de sua representatividade no país.
“Uma preocupação fundamental é a isonomia”, avalia Cássio Scarpinella Bueno. “O juiz deve estar atento a isso para buscar um equilíbrio. Porque os grandes litigantes têm, com tranquilidade, condições de pagar um bom advogado, de ir para Brasília. Mas a democracia não é apenas dos grandes, é também dos pequenos. E aí entra a importância do amicus curiae, de dar voz àqueles que, de outra forma, talvez não tivessem voz.”
Expectativa de avanços
O STJ tem dado atenção especial à questão. O tribunal já promoveu dois eventos em 2025 para discutir o papel e os limites da intervenção dos amici curiae nos julgamentos. Em março, o ministro Ricardo Villas Bôas Cuêva organizou um seminário para comparar a aplicação desse instrumento no Brasil, nos Estados Unidos e no Japão. Já na segunda-feira passada (19/5), Cuêva e outros ministros trataram do assunto com acadêmicos em um debate na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Segundo Cuêva, o STJ espera afunilar o entendimento sobre o amicus curiae a partir de novos julgamentos em um futuro próximo. “Ainda temos uma dificuldade de transposição para a prática e a definição de critérios objetivos, que dependem da criação de uma jurisprudência mais objetiva. Essa criação dependerá, claro, de alguns julgados, que espero que ocorram em breve.”
Para Cássio Scarpinella, um aprimoramento da lei poderia eliminar as dúvidas, mas ele não considera essencial que isso seja resolvido pela via legal. “Uma boa forma de enfrentar o problema é a que estamos vivenciando. Na prática dos tribunais, vão se delineando decisões que tornam os limites mais claros.”
“O aumento da atuação do amicus curiae faz bem ao Judiciário, porque a tendência dos tribunais é cada vez mais buscar a fixação de teses. E, para legitimar a fixação dessas teses, ou seja, de decisões que vão impactar outros processos, a participação da sociedade é fundamental”, defende Osmar Paixão.