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POR QUE SUA TRANSFORMAÇÃO DIGITAL PODE FALHAR

Desde que o 'hype' da transformação digital atingiu as empresas, muitas delas têm agora que lidar com uma realidade já bem conhecida no mundo empresarial: o alto índice de insucessos das transformações organizacionais. De acordo com vários relatórios recentes de consultorias, o índice de falha varia entre 70% e 90% - o que não é diferente do que já ouvimos sobre insucessos de fusões e aquisições, estratégias, investimentos, entre outras apostas empresariais.

Mas antes de ir a fundo no que está por trás de todo esse insucesso, é importante distinguir otimização digital de transformação digital. Otimização, nesse caso, é o aumento da eficiência de processos e tarefas por meio de tecnologias. Trata-se de um procedimento já adotado (ou, pelo menos, que deveria ser) pela maioria das empresas. Traz benefícios incrementais, mas não altera o modelo de negócios das organizações de forma a chacoalhar seu setor ou fazer frente aos "disruptores" que estão mudando as regras dos negócios.

Essa última é a promessa da transformação digital - ao menos pela ótica da literatura de negócios e das consultorias. Se você não for o disruptor do seu setor, alguém será, e aí poderá ser muito tarde. É algo para se estar atento, já que temos vistos companhias relevantes sumirem ou perderem mercado por causa de novos modelos de negócios ou produtos substitutos.

Mas o poder de atração deste tema vai além do saudável, estimulado pela atenção dedicada pela mídia e gurus digitais. Nove entre dez conselhos estão pressionando executivos pela transformação digital de suas empresas. O International Data Corporation (IDC) prevê que, apenas em 2018, organizações investirão US$ 1,3 trilhão em tecnologias e serviços para transformação digital - bem mais, por exemplo, do que os US$ 360 milhões esperados em treinamento e desenvolvimento de pessoas.

Executivos e investidores, então, se "jogam" nesse tema, muitas vezes à custa do efeito nocivo de desviar o foco de áreas essenciais da organização, responsáveis por garantir os resultados atuais. Por exemplo, a gestão de custos fica em segundo plano. A força de vendas perde o interesse pelos produtos ou soluções que precisam ser "transformados". Colaboradores se sentem desmotivados e com medo, pois o que fazem não fará parte do futuro da empresa e, como ouvem pela mídia, tecnologias digitais eliminarão milhões de posições de trabalho ao longo dos próximos anos.

Outro ponto a ser observado é que a inspiração para a transformação digital tem sido primariamente as grandes empresas de tecnologia, como Google, Uber, Airbnb e Amazon, entre outras que trouxeram modelos inovadores de negócios para grandes setores da economia. Mas essas empresas tiveram em suas histórias dois pontos em comum sobre os quais pouco se fala.

O primeiro é que elas tinham capital de risco em excesso em seus balanços, vindo de investidores que perdem muito dinheiro em muitos negócios mal sucedidos e ganham bem mais em poucos deles - realidade quase impossível de ser replicada pela maioria das empresas com negócios já maduros, comprometidas com margens e dividendos para seus acionistas.

O segundo é que esses negócios foram desenvolvidos através de processos iterativos de suposições, testes, muitos insucessos (ajudados pelo excesso de capital de risco) e poucos excelentes acertos, que geraram modelos vencedores e escaláveis, na maioria das vezes bem diferentes da ideia inicial.

Esses processos parecem mais uma jornada de aprendizado do que o modelo preferido nas transformações digitais: o de um projeto, com escopo e etapas pré-definidas, onde a premissa básica é a que se sabe o que se tem que fazer e o desafio é apenas o de execução. Esse talvez seja um dos aspectos mais relevantes a serem aceitos. O sucesso dessas transformações depende de muitas variáveis que ainda estão em estágio inicial de desenvolvimento.

Um bom exemplo são as próprias tecnologias associadas às transformações. A inteligência artificial, apesar do progresso recente, ainda possui muitas limitações. Uma pesquisa realizada pelo jornal britânico "Financial Times" com grandes bancos ao redor do mundo mostra que promessas feitas por seus executivos há alguns anos em relação à inteligência artificial ficaram distantes de se realizar. O motivo principal foi uma reconhecida falta de compreensão mais ampla dessa tecnologia.

Complica ainda mais o cenário o fato de que a mão de obra nessa área ainda é escassa e sem maturidade de experiência mesmo para algumas das aplicações mais básicas. Uma das mais relevantes consultorias em blockchain - tecnologia que muitos posicionam como revolucionária - é de um grupo de estudantes de uma universidade da Califórnia.

Além disso, a maioria dos planos é baseada em hipóteses relacionadas a comportamentos e adoção por usuários que deveriam ser testados já que, quando não correspondem à realidade, mudam completamente o rumo do projeto. Isso sem falar do quão rápido os hábitos das pessoas estão mudando.

O fato é que anos de investimentos não estão se pagando. Todo o 'hype' em relação a esse tema enaltece muito o que dá certo. Em meu trabalho de prospectar inovações para potenciais aquisições em meu setor, centenas das startups com ideias brilhantes e nomes esquisitos com as quais conversei nos últimos três anos desapareceram. Poucas dezenas ainda lutam para se estabelecer.

Essa é a realidade de que executivos ainda não se deram conta em suas transformações: é preciso aceitar e incorporar a incerteza aos seus modelos de gestão. Em vez de distrair suas organizações com o improvável, ajudá-las a aprender a lidar com milhares de pequenos insucessos para criar algo que seja transformador. Desafio difícil para um ambiente onde se promete certezas e se penaliza o fracasso.

* Claudio Garcia é vice-presidente executivo de estratégia e desenvolvimento corporativo da consultoria LHH, baseado em Nova York